Os oceanos de liquidez e os dilemas dos bancos centrais
Por Paulo Gala
Os grandes movimentos de preços de ativos são, no fundo, reflexos de superciclos. Os mais tradicionais são os de liquidez e de commodities. Hoje, vivemos um superciclo de expansão de liquidez por conta das respostas à crise de 2008. Uma leitura fácil para estudar esses ciclos de liquidez na segunda metade do século XX e primeira do século XXI é o maravilhoso “Capital flows to developing countries in a historical perspective”, de Yilmaz Akyuz. O autor apresenta quatro grandes ciclos de fluxos de capital para países emergentes medidos em bilhões de dólares e porcentagem do PIB desde o início dos anos 70. Dá para ver claramente que o ciclo daquela década foi capitaneado por empréstimos para governos desenvolvimentistas na Ásia e América do Sul. A liquidez mundial veio dos déficits externos americanos e da reciclagem dos petrodólares depois de 1974. Foi, também, uma boa época para preços de commodities e o endividamento no mundo emergente correu solto. E assim foi até a crise da dívida em 1980. Com medo da inflação, o FED deu uma paulada nos juros no final dos anos 70 e colocou todo o mundo emergente de joelhos.
A festa voltou com força nos anos 90, depois da digestão dos excessos dos 70. Essa nova fase foi também disparada por um excesso de liquidez decorrente da crise dos Savings and Loan nos EUA e do estouro da bolha japonesa em 1990 – dinheiro farto. E, como diz meu amigo, o brilhante economista Gabriel Palma, lá estava de novo a América Latina como tomadora de empréstimos e de liquidez de última instância. Nessa, a Ásia surfou junto. O segundo ciclo de boom e bust começou a terminar em 1997, com a crise asiática. Depois, vieram Rússia, Brasil e Argentina. Nesse segundo ciclo, os investimentos diretos estrangeiros tiveram mais importância do que os empréstimos comerciais dos anos 70. Depois, veio o terceiro ciclo, turbinado pela redução das taxas de juro de Greenspan no rescaldo do estouro da bolha pontocom. Além disso, houve a reciclagem dos superávits asiáticos, especialmente da China, reinvestindo seus capitais em títulos americanos e jogando as taxas longas ainda mais para baixo. Então, essa farra da liquidez que já conhecemos ajudou a criar a superbolha americana e se espalhou para o mundo emergente. Nessa época, a bolsa brasileira saiu de 10.000 para 70.000 pontos. O ciclo acabou na quebra da Lehman Brothers em 2008, no terremoto seguido de tsunami que todos nós sofremos. Estamos, neste momento, no quarto ciclo, em que a sincronia é ainda maior entre todos Bancos Centrais.
O mundo não cresce mais como antigamente. A meu ver, dois fenômenos da última década ajudam a explicar essa nova estagnação secular: excesso de dívida e de oferta. A explosão do endividamento público e privado vem já desde os anos 90, tendo certamente os EUA como motor principal. O motor da renda foi substituído pelo motor do crédito. Ninguém tem patrimonio de fato, tudo é colateral de dívidas. A sobreoferta mundial tem a ver com a ascensão da Ásia dinâmica do leste. Só a China hoje conta com mais de 100 milhões de trabalhadores produzindo bens manufaturados, tendo saído praticamente do 0 em 1980. A consequência disso é inflação baixa permanente, que provoca juros baixos, que, por sua vez, não são capazes de estimular novos investimentos nem novo endividamento. O mundo entrou num looping vicioso e o Brasil caminha para a mesma trajetória. Não há demanda pela via do investimento como no passado. Governos altamente endividados não têm coragem de acionar o gatilho do investimento público, com a exceção dos EUA.
Nesse contexto, o debate sobre a política monetária norte-americana tem sido intenso, não só pelos impactos potenciais das decisões do FED sobre os ativos globais, mas, também, pela eficácia das ferramentas de política monetária utilizadas pela instituição para cumprir seu duplo mandato – estabilidade dos preços em um ambiente de pleno emprego. Fatores de curto prazo que ajudam a equação: há sólido crescimento dos gastos das famílias e fortalecimento do mercado de trabalho que poderão contribuir para que a inflação se desloque para cima de 2% (meta não-oficial do PCE para o FED). Por outro lado, o baixo preço do petróleo é uma importante fonte deflacionária e há sinais de arrefecimento do mercado de construção civil. O mercado começa a acreditar que talvez o FED esteja exagerando na dose. Os juros longos estão praticamente nos mesmos patamares dos juros curtos. Diante desta dicotomia, as próximas atuações do FED dependerão da evolução dos dados como sempre. O objetivo do FED parece ser uma alta “lenta, gradual e segura” da taxa de juros – se é que isso é possível –, até os 3% nominais considerados por muitos de seus diretores como o juro neutro hoje para os EUA (aquele que não acelera nem desacelera a inflação). A dúvida que persiste é quanto ao final desse ciclo. A taxa pode ir acima de 3,0% mesmo com atividade econômica mundial em desaceleração e “trade war”? Se tudo correr bem, as bolsas se acalmam, o mesmo valendo para os títulos de alto e baixo risco. Se correr mal, pode surgir a grande correção que muitos esperam há anos.