OTIMIZAR A JUSTIÇA E SUPERAR A CRISE – PARTE I DO EXCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO
“A lei deve ser breve para que os indoutos
possam compreendê-la facilmente.”
A Justiça brasileira agoniza. Sabemos todos, e insistimos nos mesmos erros. Um deles é o de pôr exclusivamente nas costas dela a culpa de todos os problemas. Isso não só é errado. É injusto. Está com jurisdicionados e advogados a maior parte dessa responsabilidade.
Há circunstâncias e situações a corrigir na organicidade da Justiça? Sim, talvez não poucas. Mas há sobretudo muitas correções a fazer fora dos órgãos jurisdicionais. A sociedade tem que ser mais bem orientada sobre direitos e obrigações. Advogados têm que melhorar formações e atuações. Cursos de Direito precisam ser mais arejados. Legisladores devem aprimorar as leis.
Tomando todo o cuidado do universo para que pobres e hipossuficientes não se vejam minimamente prejudicados, é preciso ter um filtro maior na provocação da tutela jurisdicional. Um processo judicial, salvo engano, tem custo operacional de cerca de dez mil reais; e é a sociedade que arca com esse gasto.
Compreensível uma pessoa natural lutar por algum direito material muito inferior ao custo do trâmite do processo judicial. Mas a pergunta é: compreende-se uma empresa de porte razoável litigar por valor quatro, cinco vezes menor do que o desse custo?
Evidentemente não falo de disputas que envolvam temas morais ou guiados por princípios fortes. Falo apenas dos que se submetem – ou deveriam se submeter – à régua do pragmatismo, ao metro do binômio custo-oportunidade. Bem sei que todo centavo importa e a soma deles pode chegar aos milhões, mas indago: as contas foram feitas no âmbito da iniciativa privada? Não há custos internos também para a empresa na administração de processos judiciais em curso, sejam os diretamente tratados por seu corpo de funcionários, sejam os colocados em mãos de advogados autônomos?
Existem casos e casos. Perfeitamente. Há situações que são individualmente de pequena monta e que, somados os valores, geram prejuízos enormes. Além disso, reclamam algum procedimento para que a má-fé não se instale definitivamente no universo dos devedores. Digo isso porque, se a empresa credora nada fizer, certamente o devedor se sentirá motivado e até incentivado a continuar nessa devedora circunstância. E pior: talvez motive outros também a serem inadimplentes, irônicos, imorais e socialmente lesivos.
Porém, sem desconsiderar situações muito especiais, que carregam particularidades exigentes de perspectivas mais amplas que as do pragmatismo, insisto em indagar se, de fato, há necessidade de judicialização de demandas de menor potencial econômico-financeiro quando não envolverem questões mais complexas.
Essa indagação é importante porque a resposta ajudará na desobstrução do gargalo judicial.
Penso estar bem claro que falo aqui das pessoas jurídicas de médio e pequeno porte que podem perfeitamente, diante da ontologia dos fatos, ir além da judicialização, premiando contas e o binômio custo-benefício.
As pessoas naturais também podem e devem repensar muita coisa. Hoje em dia se confunde mero aborrecimento, dissabor social, com direito. Demanda-se por tudo e qualquer coisa.
Certa vez, uma colega, executiva de grande seguradora, disse-me que bem mais da metade de ações ajuizadas por segurados cobrando indenizações de seguro poderiam ser evitadas se, antes, os advogados tivessem procurado as seguradoras. Fato triste e verdadeiro. Sabe-se lá por qual motivo, talvez algum inconfessável, advogados preferem demandar diretamente em Juízo antes de tentar – repita-se, tentar – a composição.
Que ninguém torça o nariz para o que escrevo. O objetivo é bom e construtivo. É mais do que tempo de abandonar o autoengano e tentar mudar completamente a mentalidade litigiosa. A crítica, ainda que por vezes ácida e contundente, tem um só propósito: buscar o bem comum, o que é melhor para todos.
Sem desrespeitar de forma alguma o pleno e digno exercício da advocacia, penso que muitos advogados exageram nas orientações e postulações, levando ao Poder Judiciário ações temerárias, senão aventureiras. A palavra “acordo” parece não existir no vocabulário da advocacia contemporânea. Composições e transações não são incentivadas, mas tratadas como verdadeira blasfêmia por milhares de advogados.
Alterou-se o sistema processual civil para agasalhar o conceito de acordo, sobretudo depois da sentença, e ao que parece nada mudou. Ou melhor: mudou-se tudo para se manterem iguais todas as coisas.
O legislador tem que avançar mais. O pensador do Direito também. É hora de combater o excesso de litigiosidade. Nenhuma Justiça em todo o mundo tem tantas ações em curso como a brasileira. Isso é constrangedor. A Justiça do país é, de um modo geral, muito boa. Os juízes, qualificados, preparados, confiáveis; os serventuários, normalmente dedicados e atenciosos. Confia-se mais na Justiça do que em qualquer outro meio de solução de conflitos.
Ela, no entanto, não consegue ser melhor, ainda mais eficiente, mais rápida, porque se encontra para lá de saturada. E se não houver por parte da sociedade em geral uma resposta adequada, prestará um serviço aquém da sua dignidade e da sua excelência.
Premidos pelo excesso de trabalho, por milhares e milhares de ações que não precisariam existir, juízes serão obrigados a julgar menos criteriosamente, abandonando a arte em nome da “produtividade”, palavra que muitas vezes significa perda de qualidade e que tem que ser escrita mesmo entre aspas. Desafogar a Justiça não é apenas contribuir com o bom trabalho de funcionários e juízes; é, antes e principalmente, ajudar o fomento da economia, dependente que é da segurança jurídica.
Demandar menos em Juízo é fundamental. Desenvolver a cultura dos acordos será bom para os advogados e a sociedade. Tudo mais rápido, veraz e eficaz, com circulação de riquezas. A Economia será imediatamente impactada com a queda da judicialização. A ordem moral também, já que os litígios temerários, aventureiros ou fundados nos casuísmos e nas sensibilidades afloradas, nas miudezas, não ocuparão mais tempo e espaço.
Aos funcionários sobrará tempo para executarem bem suas funções e atenderem o público sem o sentimento, em parte compreensível, de sobrecarga. Para os juízes haverá melhores condições de fazerem aquilo que exige calma, atenção, condições favoráveis: dizer o Direito ao caso concreto e distribuir a justiça.
Criteriosidade escrupulosa, razoabilidade e proporcionalidade devem ser amigas íntimas dos advogados, consideradas pelos jurisdicionados e marcas presentes no Direito em exercício contemporâneo, destinando-se à justiça o que é de fato importante.
Sim, longe de modismos linguísticos e frases retóricas, a verdade é que, em se tratando de Justiça, o “menos é mais”.
Na parte II tratarei da necessidade de aperfeiçoar a execução e a efetividade da cobrança dos devedores, usando mais, e mais rapidamente, instrumentos legais como a desconsideração da personalidade jurídica. Tão prejudicial para a Justiça como o excesso de litígios é ver devedores inadimplentes sapateando sobre os credores insatisfeitos e as próprias decisões judiciais.
29 de abril de 2021
Dia de Santa Catarina de Sena, padroeira da Itália
Paulo Henrique Cremoneze
Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), pós-graduado em Direito “lato sensu” e Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, vice-presidente da UJUCASP – União dos Juristas Católico de São Paulo, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de artigos publicados em revistas especializadas e de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, professor de cursos modulares da ENS (em parceria com o CIST) sobre seguros, logística e transportes (tema: avaria grossa), ex-professor de Direito Constitucional e de Ciência Política da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos (por quase dez anos), professor convidado da ADESG-Santos (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra), colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna de Santos, comentarista regular de programas da Rádio Jovem Pan e da TV Cultura em Santos e região, ex-membro e membro atual de comissões temáticas e de prerrogativas da OAB-SP e OAB-Santos e laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia.