Outros lados do home office durante a pandemia
No mundo durante-pandemia, numa primeira visada, poderia dizer que estamos experimentando um grau de turbulência tamanho que nos faz acreditar que o mais sensato é mesmo viver um dia de cada vez. Minutos após a declaração da pandemia do novo coronavírus pelo diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, funcionários e gestores de todo o planeta viram-se diante das ameaças de desmonte de empreendimentos, da derrocada de setores comerciais, das paralisações em diversas linhas de produção e, como consequência imediata, da necessidade de medidas como férias coletivas, reduções de salário e demissões, muitas. Sem mencionar o lado mais trágico desse momento que é a perda de vidas.
Estamos vivendo uma anarquia gerencial?
Caminhando para três meses de isolamento social, para os que estão conseguindo se manter no mercado, uma espécie de anarco-gerenciamento se impôs. O susto da pandemia levou todo o trabalho para casa, mas a maioria das empresas não estava preparada para garantir recursos e insumos para as atividades home office de seus funcionários. “Minha internet vai dar conta?” “Meu computador tem memória suficiente?” “Vou ter que improvisar uma mesa de trabalho na cozinha?” “Bom, vou dar meu jeito”. Nessa conjuntura, a cobrança interna dos indivíduos aumenta muito. Porta aberta para constrangimentos e ansiedades.
Num primeiro momento, de fato, parece realmente que temos "mais tempo" para produzir e, como damos nosso jeito, vamos manter as metas em dia. Mas pelo que ando apurando não parece ser tanto assim.
O modelo home office implantado às pressas por conta da pandemia não reflete apenas a imagem de artistas e influenciadores em lives e canais fechados mostrando o dia-a-dia em suas cozinhas e cantinhos de yoga “aproveitando mais o tempo para cuidar da gente”.
Na real, o trabalho remoto para a grande maioria não são apenas flores e alguns espinhos começam a pinicar.
Às tarefas profissionais foi somado o trabalho doméstico, que inclui o acompanhamento full time da educação e entretenimento dos filhos, além de cuidados com parentes que se encontram nos grupos de risco. Vale o destaque de que a barra com certeza está pesando mais para as mulheres que já historicamente tinham de dar conta desse sobretrabalho. Mas, pelo menos, em jornadas diferenciadas.
Estamos tomando aquele antigo cafezinho na copa do escritório em frente à tela do nosso notebook, isolados no sofá, em produção intermitente para suprir a ausência de colegas dispensados.
“Home Office – Tá bom para todo mundo mesmo?”
Mesmo para uma categoria como a dos publicitários que, assim como outros profissionais de comunicação, vinham adotando o home office como espaço de produção, a mudança brusca para o trabalho remoto de forma integral, durante a pandemia, teve impactos negativos. Divulgada no final de abril, uma pesquisa revela que esses profissionais estão preocupados com questões como o aumento do tempo de trabalho, saúde mental e produtividade.
Um levantamento feito online pelo publicitário e doutorando em comunicação Lucas Schuch, apresentador do podcast “Propaganda não é só isso aí”, ouviu 435 profissionais de agências brasileiras que não ocupam cargos de liderança. Para 84% deles, o home office nunca foi habitual nas empresas para as quais prestam serviços. Apenas 15% disseram que a prática é bem aceita pelos contratantes. Apesar de uma tendência, para 94%, o trabalho remoto só foi de fato efetivado durante o isolamento.
Metade dos entrevistados disse não estar preparada para a empreitada e considera como maiores desafios a falta de contato humano presencial e a extensão das jornadas. A questão do espaço para a montagem de um escritório doméstico também foi destacada como um problema.
Dos entrevistados, 35% disseram estar produzindo abaixo do rendimento em comparação ao pré-pandemia. Quatro em cada dez participantes acreditam que a cobrança por produtividade aumentou.
Tendências anteriores à Covid-19
Em dossiê sobre as tendências das relações de trabalho para 2020, a empresa de consultoria para recursos humanos americana Mercer mostra como as empresas e colaboradores estavam se posicionando frente aos desafios da economia global nesta segunda década, antes da Covid-19. A pesquisa envolveu 7.300 executivos e gerentes top e seus funcionários, em 34 países.
Segundo a pesquisa, no recorte Brasil, 59% dos trabalhadores acreditavam que as organizações deveriam ouvi-los para tomar decisões, "numa demonstração de que elas se importam com eles e os empurram para um futuro melhor". O foco seria o trabalho conjunto para que todos prosperem na mesma medida.
Um dado interessante é que para os executivos brasileiros apenas 50% da força de trabalho estaria apta a se adaptar a novas configurações, especialmente quando essas envolvem TI. No entanto, 87% dos funcionários afirmaram estarem prontos a apreender as novas habilidades que são demandadas em velocidade nunca vista. A pesquisa mostrou ainda que, por aqui, 55% dos funcionários já corriam o risco de desgaste em 2020.
Para 34% dos funcionários de todos os países que participaram do levantamento, seus empregos já estavam ameaçados, e consideravam a possibilidade de serem substituídos até 2023. Dos líderes de RH entrevistados, 63% previam um movimento salarial estagnado para este ano.
Mas, e agora?
O durante-pandemia parece nos dar pistas do que podem ser, de fato, as novas tendências. Apesar dos empolgantes discursos de grandes CEOs sobre a importância de relações de trabalho mais humanizadas, o que temos de concreto é que o lucro sempre veio e continuará vindo em primeiro lugar nessa cadeia. A guerra das marcas pelo lugar ao sol nunca deu, e agora mais ainda, não vai dar colher de chá para bravos profissionais e mesmo para seus gestores, que precisam apresentar resultados sob pena de entrarem na lista dos demitidos.
Os métodos de gestão pré-pandemia já nos faziam acreditar que somos todos colaboradores em pé de igualdade nos processos decisivos, que não existe hierarquia funcional, que todos devem ser responsáveis por tudo (até pela produtividade do colega) o que, sutilmente, nos coloca na posição de supervisores de nós mesmos.
Mas, os resultados dessa forma gerencial tradicional têm levado, aqui no Brasil, a altíssimas taxas de adoecimento por transtornos mentais, que só perdem (ainda) para lesões físicas como a LER-Dort. Isso porque as expectativas por uma gestão de fato mais horizontal são grandes. Mas poucas empresas conseguem criar formas de conter fenômenos como assédio, cobranças por metas inalcançáveis e condições efetivas para garantir a saúde de seu corpo funcional.
No durante-pandemia, me parece que as relações de trabalho, pelo menos por aqui, ficaram ainda mais instáveis. De um lado, empresas, especialmente as pequenas e médias, tendo de lidar com as altíssimas variações do dólar e uma previsão de decréscimo do PIB em 4,7% este ano, de acordo com dados oficiais do Ministério da Economia divulgados na última quarta-feira (13/05). De outro, profissionais negociando jornadas e salários para sobreviver.
Nesse vai e vem de lives estritamente corporativas, penso que estamos dedicando pouco tempo e espaço (ainda que virtual) para conversarmos sobre nossas angústias reais e os medos que estão aflorando e se acentuando ao longo da pandemia.
E, também, mais ainda, sobre nossas esperanças!
Minha visão sobre esse “novo tudo” é que, se não houver francos debates entre nós sobre os efeitos concretos da pandemia nas relações e condições de trabalho, do que realmente veio pra ficar e do que poderá ser apenas passageiro - ou ser transformado em outras possibilidades de gerenciamento -, as ansiedades tendem a se intensificar e os riscos de adoecimento podem aumentar muito consideravelmente.
Fontes:
Estudo Global Talent Trends 2020
Meio e Mensagem, em https://bit.ly/36p4x7a
Pós Doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina
4 aExcelente reflexão Manuella!
Jornalista na Federação Única dos Petroleiros (FUP) e Mestre em Políticas Públicas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso)
4 aTô nessa há mais de dois meses e o trabalho, que já monopolizava a minha vida, agora é literalmente uma extensão do meu corpo, que sofre terrivelmente as consequências dessa invasão. E nós vamos nos habituando com esse novo normal, cada vez mais escravos do sistema.
Gerente de Marketing - Marketing Manager
4 aMuito bom, Manuela. Estamos vivendo um período de grandes expectativas e ansiedade. A mudança drástica da forma de trabalhar tem sido um desafio enorme e tb um grande desgaste emocional. Parabéns pelo artigo, pois ele reflete bem a realidade é nos faz pensar em como estamos lidando com isso tudo.
Jornalista
4 aHá algum tempo trabalho em casa e habituada com a rotina doméstica, mas ela não inclui o contato com o outro, a não ser pelas lives, às vezes cansativas com muita gente falando do mesmo e sem aprofundamento. O que mais me preocupa não diz respeito as minhas dificuldades em lidar com a nova rotina por causa da pandemia. Me constrange e revolta a falta de respostas para aqueles que não têm o que comer, não têm acesso a água potável, quem dirá ao álcool em gel e distanciamento social quando moram em habitações inadequadas, em cômodos minúsculos onde habitam mais de cinco pessoas. Auxílio emergencial? A rapidez atendeu somente aos banqueiros.
Jornalista | Redatora | Editora | Pesquisadora
4 aOlá, querida Manu, que emoção ler o seu artigo! Bem, ele é uma reflexão que é quase um soco no nosso estômago. O debate é necessário. Sim, precisamos ver todos os lados do trabalho remoto: separar, vamos dizer, o "joio do trigo". Ver realmente o que se pode ganhar com o home office (e há ganhos sim!) dentro de relações de trabalho mais humanizadas (será isso possível um dia?). O atual "tudo diferente" realmente deveria mexer com questões conjunturais e estruturais para deixar pouco ou nenhum espaço para as "palavras funcionais" do neoliberalismo que se apoiam em narrativas de autoajuda, gestão disso ou aquilo. Como se pudesse existir um regramento para o que é humano. Tudo que é sólido desmancha no ar.....não é mesmo?