Pé no chão, fadinhas
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Pé no chão, fadinhas

Lembro-me de ter passado algumas vezes, à bordo do Falcão Prateado de Curitiba (a linha de ônibus "Ligeirinho/Inter II"), por um outdoor oferecendo um curso de telemarketing que dizia que "150 pessoas por mês são contratadas!".

Para os desesperados, aquilo poderia parecer algo bastante positivo. Na prática, era simplesmente o mesmo que dizer que "todo mês, 150 pessoas não aguentam e vão embora, aí a gente tem que repor".

O que quero dizer é que portas de entrada largas muitas vezes são resultado de portas de saída também largas.

Sim, eu falei recentemente sobre as empresas brasileiras tendo que concorrer com "os gringo". Em seguida apareceu esse tal de "Manifesto Tech" e fiz cá minha própria versão. "Esse bolo todo" é o assunto do momento, pelo visto.

Meu comentário com alguns amigos foi que o Manifesto Tech é uma espécie de tautologia. É como dizer que "para podermos avançar, precisamos andar para a frente". É bacana que aquelas coisas sobre treinar novos talentos sejam ditas, mas não tem nada ali que , na minha humilde opinião, ataque de frente os problemas reais.

Ou pior: fala-se sobre contratar e treinar "juniores" como uma espécie de bom-mocismo, um ato em favor do bem-estar social, enfim, yet another virtue signaling. Às empresas que estão perdendo desenvolvedores sênior, a solução apresentada é treinar mais desenvolvedores júnior.

Sei lá... me lembra muito uma máquina de fazer linguiça... E estão propondo jogar os desenvolvedores inexperientes nesse moedor.

A desculpa é muito similar a todo mimimi vitimista que há por aí: finge-se que o CEO é mauzão e que ele faz as coisas para prejudicar alguma "classe" de maneira sádica enquanto enrola o bigode e ri maquiavelicamente sob relâmpagos sinistros.

Pois bem, deixa eu dizer duas coisas importantes:

  1. O CEO não é necessariamente teu amigo;
  2. O CEO não é necessariamente teu inimigo.

E você pode aplicar isso a qualquer cargo de gestão na empresa.

O que o CEO quer é dinheiro. E isso não significa que ele queira apenas dinheiro. Ah, não. Você pode ter certeza que muito CEO por aí fica felizasso em saber que tem uma empresa bacana em que as pessoas são felizes e satisfeitas e permanecem não por medo ou preguiça mas, sim, porque ali têm a oportunidade de pôr em prática suas virtudes. Muito CEO se esforça por isso e alguns talvez considerem o lado financeiro quase como uma espécie de "mal necessário" nessa história toda.

(E outros andam de Porsche por aí.)

Mas, seja como for, dinheiro é necessário. Sem ele, a roda não gira, e se você é esperto já deveria estar se perguntando como é que investir dinheiro no treinamento de desenvolvedores juniores geraria mais dinheiro, em retorno, para a empresa.

Se você prefere viver no mundo dos contos de fadas, vai pensar que basta que "as empresas" deixem de ser tão más e passem a investir no treinamento de novatos e, plim!, a mágica acontece, porque o único empecilho é mera má-vontade por parte de algumas pessoas chave.

Se prefere o mundo real, eis o meu ponto de vista: tem tanto júnior implorando por uma oportunidade nesse mercado que se diz sedento de profissionais qualificados ou pelo menos interessados porque absolutamente não vale a pena para essas empresas investir nesses profissionais, e o motivo é que nelas impera, de uma forma ou de outra, a total desgovernança. Não há estrutura para treinamentos, não há um senso de comunidade, de propósito, de comunhão dentro da empresa e esta retém os funcionários só enquanto estão acomodados, coisa que não dura para sempre, e agora a solução proposta é enfiar mais gente nessa fogueira porque a lenha antiga está acabando?

Dizer que "as empresas precisam parar de exigir tanto de um iniciante" é uma conversa boboca porque ignora que essas coisas acontecem porque essas empresas são uma baderna miserável, com projetos entrando pela janela a toda hora, bug explodindo na mão de cliente, "comercial" vendendo coisa com prazos mirabolantes, gestor metendo feature idiota onde lhe dá na telha, "não dá tempo de escrever testes unitários" e vislumbre absolutamente ZERO de conseguir parar essa balbúrdia toda por 5 minutos para conseguir sequer começar a pensar em como treinar alguém. Tu quer mesmo meter um pobre coitado totalmente sem experiência nesse tipo de situação?

Pense nos danos psicológicos!

E quando o dev júnior conseguir, finalmente, sua preciosa oportunidade, dado que o problema da outra ponta (a perda dos profissionais experientes) ainda não foi solucionado, o que é publicado no LinkedIn como um lindo programa de capacitação acaba sendo meramente uma forma de explorar esses jovens ao máximo enquanto eles ainda não se sentem confiantes o bastante para trabalhar para os gringo.

É isso. É um jogo contra o tempo e uma aposta nas estatísticas: se 40% dos funcionários terminam acomodados, vamos dobrar o volume de input. E, no fim do dia, o Brasil se torna uma academia de formar devs para trabalharem para o exterior.

De novo: talvez seja até bom para você, dev, mas para quem procura "maneiras melhores de lidar com a forte expansão do setor de tecnologia em cenário de escassez de profissionais", (numa análise fria, descontando a bênção que é ajudar as pessoas a começar na profissão) é apenas dinheiro sendo jogado fora. E não é pouco.

Seguindo nesse ritmo, rapidamente a indústria brasileira se tornará uma máquina de moer pessoas, rodando em alta velocidade, esmiuçando devs iniciantes aos montes até que fique claro para estes que é melhor começar direto com os gringo, sem passar por aqui.

E garanto que não faltará empresas especializadas querendo lucrar muitos dólares fazendo essa "conexão direta", finalmente cortando da nossa indústria sua "fonte da juventude".

Pessimista? Bem, pense comigo: se o problema é que os experientes estão indo embora, quem é que vai treinar essa galera nova? E se tem uma sacanagem que as empresas podem fazer é contratar juniores sem intenção de treiná-los, mas apenas usá-los como mão de obra barata: isso gera uma frustração enorme para todos. Júnior quer aprender, afinal, e embora haja boa-vontade sobrando para meter a mão na massa, é cruel deixar que se virem sozinhos -- porque, afinal, não é como se os prazos fossem "bem susse" e os bugs fossem bem poucos, certo? Quão maligno é jogar essas pessoas assim direto na chapa fervendo?

Admito: não sei delinear uma solução para o problema da "fuga de profissionais". Inclusive porque não existe bala de prata: "cada um é cada qual". Mas tenho certeza de uma coisa: criar fantasias não ajuda em nada. O que ajuda é dar nomes para os problemas, sem medo, e enfrentá-los.


Diego Tsutsumi

Sr SW Engineer @ AWS | Ex AI Researcher @ IBM

2 a

Essa situação toda de escassez do mercado brasileiro de devs me fez repensar se o modelo "fábrica de software" não se torna mais relevante. O "Dev terceirizado" que trabalha pra várias empresas em vários projetos através de uma "empresa Proxy" as vezes chamada "Fábrica de software", as vezes de "Consultoria e prestação de serviços de projetos de TI", seja o nome que for, nunca funcionou muito bem na minha experiência. O Dev funcionário, dentro da própria empresa tem sempre um contexto melhor pra ser mais produtivo, tem menos vai e volta nas entregas, comunicação mais fluida, e não tem a barreira contratual do projeto entre "Empresa Proxy" e "Empresa comprando o serviço". Porém, entretanto, todavia... Mesmo não gostando desse modelo, eu acredito ainda haver uma "incompetência" (que eu compartilho) de gerir esses desafios todos em uma "Empresa Proxy". Nesse cenário de escassez começo a reavaliar se não é um modelo mais eficiente...

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