País das maravilhas
“Parece que você vive no país das maravilhas” disse uma pessoa se referindo ao meu otimismo. Respondi que tento absorver os problemas, sem repassar tanto para a equipe. Ultimamente, minha integridade tem sido um valor mais importante do que a impressão das pessoas sobre mim, mas tenho levado muito em conta os feedbacks da minha equipe, como uma ferramenta para desenvolver meu autoconhecimento.
Mas não é a primeira vez que alguém me diz isso. Refletindo melhor, concluí que isso veio dos 12 anos que me dediquei aos estudos e a prática de ballet clássico. Contagens “cinco, seis, sete, oito”, inúmeras horas de ensaio, memorização de coreografias, músicas, roupas, espetáculos, grupos e competições. Comecei a fazer as aulas com quatro anos de idade, quando minha mãe percebeu que eu tinha aptidão, mas ela sempre me falava sobre o cuidado com as ilusões e expectativas de me tornar profissional, enfatizando que os valores que eu aprenderia seriam úteis em qualquer profissão e ela estava certa, como sempre.
Aprendi que existe o solo, mas acima de tudo o grupo, poucas vitórias e inúmeras derrotas, o sonho, a profissão e o hobby. Acima de tudo, há a disciplina. Aprendi que dedicação é que me fazia chegar ao movimento e posição corretos, mesmo assim, era muito possível que houvesse alguém melhor.
O erro e a queda me faziam levantar em seguida com graça e leveza e assim, ser aplaudida de pé, pela superação. Lembro de inúmeros professores dizendo que da cintura para baixo era para ser um soldadinho de chumbo e da cintura para cima, uma princesa. Treinávamos para parecer assim, mas nossos pés terminavam machucados e carregamos para sempre “os pés de bailarina”.
Tudo isso me fez persistir, repetir passos, até que ficassem melhores. A repetição nos fazia perceber que a prática e a dedicação nos faziam melhores. Desenvolvíamos psicomotricidade, equilíbrio, postura, memorização, concentração, persistência, resiliência, responsabilidade, organização, flexibilidade, dedicação, respeito, disciplina. Aprendíamos também a perder, pois nesse período participamos além de espetáculos, de inúmeras competições e festivais.
Durante os ensaios passava muito tempo com pessoas diferentes, sendo o espetáculo um conjunto de pequenos progressos diários. Nada faz uma bailarina desistir, nem errar, nem perder uma parte do figurino e nem as quedas. O respeito ao esforço do outro, a busca pelo trabalho em equipe, pois numa coreografia se faz necessária a repetição contínua, os movimentos individuais formam a delicadeza e tentativa de perfeição do grupo, que nem sempre é atingida.
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A técnica da ponta (pointé) é o trabalho em que a bailarina apoia todo peso nas pontas dos pés. Comecei a usar as sapatilhas de ponta aos 11 anos, quando minha professora autorizou. Isso acontece quando se atinge coordenação, força e estabilidade nos tornozelos. Isso me fez aprender sobre paciência e resiliência. Esperei sete anos por isso.
A forma de ensino aprendizagem também foi de extrema importância para minha carreira docente, tanto na teoria, como na prática. Entender que os erros e imperfeições são parte de qualquer aprendizado me fez compreender que a paciência e dedicação é bilateral, necessário tanto por parte do professor, quanto do aprendiz.
O pensamento no ballet precisa acontecer de forma sistêmica e organizada, pois na maior parte das vezes, a sincronia do grupo é essencial. Em muitos momentos, tudo acontece ao mesmo tempo e de forma rápida, são inúmeras instruções que exigem técnica e delicadeza. A resiliência e o esforço para dar o melhor de si, mesmo sob pressão, nos encoraja a praticar com firmeza e otimismo. Acredito que é dessa prática que vem o meu “país das maravilhas”, onde a disciplina, resiliência, coordenação e dedicação me ensinaram a enfrentar desafios e dificuldades com a leveza e a força que o ballet me ensinaram.
Até a próxima!
Ana
Medica veterinária na área de dermatologia
2 mAdorei seu texto, repleto de aprendizado sobre disciplina e dedicação.
Professor Pesquisador
3 mAh que texto bacana!! Da delicadeza a disciplina para a vida, o trabalho. Trazer um pouco de nós na escrita , humaniza e nos aproxima do outro, das situações. Muito bom!
Educação em Saúde. Simulação clínica. Medicina UNICID, USCS e AFYA.
3 mNão sabia que éramos colegas de arte também Dra!!! Não existe ex bailarina, e como um repertório que ensaiamos até a exaustão, seguimos otimistas e resilientes em nosso propósito de ensinar e aprender. Beijos com saudades!!!
Coordenadora Adm HOVET FMU
3 mAdorei seu texto, sou fascinada nas bailarinas e toda forma de expressão e movimento! Você sabe minha paixão por esporte e faço a mesma analogia pra vida, olhar sempre o aprendizado, superação e conquistas, aliás falamos a respeito essas 2 últimas semanas e sempre ouvi da minha mãe: na vida tudo tem o lado positivo, aprenda ver o lado bom em qualquer situação. Já ouvi que sou iludida, mas não acho que olhar o lado positivo da vida nos coloca como iludida ou no país das maravilhas, mas nos da uma leveza pra olhar a vida e impede a amargura 🙌 Obrigada por mais uma delícia de texto!
Doutora em Psicologia pela USP| Coordenador do curso de Psicologia na FMU| Professora de Psicologia| Psicóloga Clínica
3 mAchei bastante interessante a sua perspectiva, Ana. Não tinha pensado neste paralelo com o ballet e a disciplina aprendida, que se estende para outras áreas da vida. Ao ver o "país das maravilhas", logo penso na Alice, que nos ensina uma lição interessante sobre o poder das ilusões, mas também sobre a perspicácia diante das intempéries que ela enfrenta, aprendendo novos olhares sobre coisas que ela aparentemente já conhecia. Você certamente nos dá exemplos diários de resiliência e capacidade de olhar por novos prismas para situações que pensamos conhecer. Talvez o nome disso seja otimismo.