Pai, seu celular está com a vó
Das curiosas e distintas manifestações desta nossa espécie homo sapiens, categoria que pela descrição aponta seres que sabem e dominam seu saber, haveria que se esperar que refletissem tal capacidade de sabedoria e distinção. Porém, das muitas evidências e demonstrações reais, antigas ou recentes, deste mesmo Sr. Sapiens, é possível, sem muito esforço, encontrar situações e vestígios de uma perspectiva de nem tanto sapiência assim. Basta ler os jornais ou frequentar certos ambientes corporativos.
Ainda que tão evidente a ironia na etimologia, deixemos os jornais com as situações mais penosas: guerras, alguns senhores eleitos na última eleição, certos comentários de chefes de governo, enfim. Dessas muitas ocorrências que vão a nos agravar e acabando por deixar nossa espécie com vergonha frente todas as demais, deixemo-las, portanto, a critério dos jornais. Aqui, será trazido um relato de uma situação específica ocorrida ontem, não digna dessas graves gazetas, mas muito cabível ao diário de um desocupado. Esse acontecimento, diga-se já cômico e burlesco, pode não vir a ser digno de crédito deste público leitor, mas que fique registrado: por mais que pareça inusitado, é verídico e testemunhal. Tanto digno de fé quanto o juramento à constituição de certos figurões tomando posse nos altos escalões da república.
Os relatos cômicos, principalmente deste nosso cotidiano café com leite de brasileiros com inflação e desgosto acumulado, estão cada vez mais urgentes, diga-se até indispensáveis. Para algumas pessoas, e dentre elas, este desocupado, a vida acaba por ficar demasiado pesada quando olhada da perspectiva da tragédia. Estes nossos tempos requerem mais comédia. Pudera Molière saltar do túmulo e vir nos acudir: “Abaixo os gregos!”. Por hora, fiquemos com este “diário de um desocupado”, ou outros muito mais célebres e avantajados canais, como o “Porta dos fundos” ou o “Manual do Aristeu”. No fim poderemos concluir que “é por isso que eu pago a internet”.
Chega de abstrações, vamos aos fatos: o senhor meu pai, Fernando de nome, a quem o conhece, sabe da verdade, a quem não conhece, seja bem apresentado, foi até a casa da minha avó, sua mãe. Um gentlement a visitar a genitora, encanto de estória se isto aqui fosse um romance. Imagina-se que tenham tratado de vários assuntos, pormenores não sabemos, suponhamos diversas trivialidades, o frio, a geada da última semana, dores nas juntas ou as festas juninas que se aproximam.
Conversa vai, conversa vem, deixou meu pai seu celular em cima da mesa da cozinha – obviamente visita em casa de avó é aí que se instala, toma café e come doce – despediu-se, foi embora e ali o esqueceu. Algum tempo depois, que também não saberemos precisar, até porque não é preciso, descobriu minha avó o celular ali, esquecido, quase abandonado, imaginem o pesar e indiferença que sentiria o aparelho se sentir tivesse. Uma ou mais uma inadvertência e descuido do Fernando, certamente foi que ela pensou. Sobressaltada - afinal, como ficar sem celular, como é possível que alguém no mundo possa estar longe do seu celular, essa extensão e anexo do próprio corpo e mente - decidiu agir. Prontamente, tomou o celular dela, e exasperada e no ímpeto em solucionar tamanho problema, agiu: passou uma mensagem no whatsapp do meu pai avisando que o celular dele estava com ela.
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Não há quem pinte um retrato de uma avó preocupada. O problema ainda estava sem solução: não havia os dois “pauzinhos azuis” indicando que a mensagem fora lida. Era preciso ir além: voltar aos hábitos mais antigos – porque seria que ficaram esquecidos no tempo, tão mais funcionais eram – decidiu ligar para o meu pai. E mais além que se decidir, de fato ligou. Uma mulher orientada a ação, foco nos resultados, veja-se logo. Ela se daria bem em algumas empresas. Poucos segundos depois, percebeu que o aparelho vibrava e tocava estridente em cima da mesa. Imaginemos o estupor daquela senhora, o cair da ficha, como se diz, ao perceber, consciente e resignada de que o que estava fazendo era uma loucura.
Mas não se deu por satisfeita. Sem demora, tratou de comunicar minha mãe, a fim de que tal mensagem de suma importância chegasse ao meu pai com a urgência necessária. O comunicado se deu por mensagem no whatsapp, que ferramenta excelente, fora o fogo, a internet e o Tinder, o que seria da humanidade sem isso hoje em dia. Mensagem instantânea, os correios que não se cuidem. Recebeu, portanto, minha mãe o importantíssimo telegrama digital. Tomou ciência da gravidade da avó agoniada. Respirou fundo, estava em sua mão o fio de Ariadne para a solução do problema. Calmamente, fez o que era devidamente esperado: enviou via whatsapp uma mensagem ao meu pai avisando-o de que “seu celular está com a sua mãe”.
Tenho visto e ouvido causos incompreensíveis, insólitos, difíceis de acreditar. Mas hoje ainda rio sozinho lembrando o acontecido. Fatos como esses não podem ficar só a mercê da memória. Registre-se, portanto, através deste texto, que vá para os anais da família, anexe-se à árvore genealógica, mas não se perca.
Se o celular já foi recuperado, não sabemos. Se a mensagem derradeira chegou aos ouvidos do meu pai por boca própria de alguém, é incerto. Pensei em escrever uma carta a ele, seria infalível que recebesse a notificação, mas iria demorar a chegar. Faça então o favor algum leitor próximo à família, ou sensibilizado com a história, de transmitir meu recado: “Pai, seu celular está com a vó”.
Consultoria em Direito e Ciências Sociais. Acadêmico de Direito (FDUSP) | Sociólogo e licenciado (Unicamp) | Mobilidade urbana sustentável e direito público.
2 a👏🏽 Bela crônica! Faço questão de encaminhar para o WhatsApp da minha querida avó 👵🏼