Pandemia, IA, liderança e a miopia das empresas

Pandemia, IA, liderança e a miopia das empresas

As empresas correm o risco de novamente perder o bonde da história no que se refere à consolidação de competências desenvolvidas na crise e ao desenvolvimento de seus líderes 

 

Há muito tempo, numa galáxia muito distante… 

Em março deste ano, os quatro anos do início da pandemia de Covid-19 foram lembrados. É impressionante como uma boa parte das pessoas já esqueceu o que isso representou, tanto para elas como indivíduos e profissionais, quanto para o mundo, incluídos aí organizações e governos. 

Não foi qualquer mudança: durante mais de dois anos, muita gente se viu confinada em suas casas, com medo de morrer e de perder entes queridos (muitos realmente perderam). E demoramos pelo menos mais um ano para experimentar a volta à uma certa "normalidade". Ou seria um "Novo Normal 2.0"? 

Uma característica dos seres humanos é esquecer rapidamente as dificuldades e abraçar as facilidades. A famosa "curva da mudança" (utilizada para descrever o processo pelo qual as pessoas atravessam transições difíceis) explica bastante bem esse fenômeno. 

Como profissional que trabalha promovendo mudanças no comportamento humano, capacitando em habilidades de liderança, vendas, negociação e eficácia pessoal, fico impressionado em ver como essa experiência traumática e disruptiva que vivemos foi tão rapidamente esquecida. Um dos poucos resquícios ainda visíveis é o cabo de guerra instalado no mercado de trabalho em relação ao modelo híbrido. Muitas empresas torcem o nariz, e algumas se enchem de coragem e impõem um retorno imediato e sem questionamentos de suas equipes. Argumentos pró e contra não faltam. 

Mas o que as empresas, suas principais lideranças e profissionais de RH e gestão de pessoas perderam de vista? O que deixamos de aproveitar nesse evento, que talvez seja o maior experimento sociológico em tempo real da nossa era? 

 

Nada do que foi será como já foi um dia... Será? 

A pandemia obrigou muitos profissionais a se adaptarem para trabalhar de um jeito diferente. Exceto para aqueles que, por conta da natureza da sua profissão, não podiam ficar em home office (trabalhadores de fábricas, laboratórios, restaurantes, hospitais etc.), a vida mudou de um dia para outro. Tivemos que nos adaptar a viver e trabalhar em espaços que não estavam preparados para isso, juntando a vida privada com a profissional, importando a escola dos filhos para dentro de casa, mudando completamente a dinâmica das nossas vidas. 

Muita gente que conseguiu passar por este período razoavelmente incólume (não foi hospitalizado nem perdeu entes queridos) deve estar rindo ao lembrar os primeiros dias de caos pela reclusão forçada. 

Não existe mudança sem aprendizado: o processo adaptativo exige aquisição de novas competências. Algumas empresas foram rápidas ao solicitar apoio a suas equipes. Trabalhei bastante para meus clientes nesse período, com programas de suporte e emocional e para ajudar as lideranças a descobrirem e adquirirem novas competências para enfrentar essa realidade. 

E é aqui que me parece estar a primeira coisa que as empresas e profissionais de RH perderam de vista depois da pandemia: as competências adquiridas naquele momento de crise, uma coisa preciosíssima para enfrentar o futuro, não foram preservadas, lapidadas ou potencializadas. Tenho dois exemplos: 

1 - Líderes continuam reclamando que é difícil liderar pessoas à distância, forçando o retorno ao presencial, como a única saída para "garantir o controle, o processo criativo e a cultura"; 

2 - A maioria dos profissionais ainda não aprendeu a se comportar no ambiente virtual, não posicionando corretamente suas câmeras, utilizando equipamentos inadequados, não valorizando sua presença virtual para ter o melhor impacto nesse tipo de interação, por exemplo. 

 

Alguém esqueceu de queimar a ponte 

As empresas e suas áreas de desenvolvimento de pessoas parecem não ter a mínima noção do que estão fazendo. Ao não buscar preservar e multiplicar o que houve de bom na experiência da pandemia, estão jogando fora o bebê com a água do banho. Por mais que as empresas queiram obrigar o retorno ao presencial, o mundo seguirá fortemente híbrido. E essas competências que não foram adequadamente assimiladas e consolidadas farão muita falta. 

Como é típico no ser humano, parecem querer apagar, o mais rapidamente possível, tudo que se referiu a essa experiência. Esquecem que adquirir novas competências é um processo que leva tempo e custa dinheiro e energia. 

Não sei se notaram, mas nesse retorno ao "Novo Normal 2.0" as lideranças (em especial os departamentos financeiros), acharam ótimo gastar menos dinheiro com viagens - sejam elas para reuniões regulares ou treinamentos complexos - já que "agora todo mundo já se acostumou a fazer on-line". Será mesmo? 

Só tem um problema: esse aprendizado não foi nem valorizado, nem formalizado, para a maioria das empresas. Em linguagem de treinamento, continuam sendo competências tácitas e não explícitas. 

E para que alguém não diga que não falei das flores: a pandemia abriu os olhos das empresas para questões graves como distúrbios psicológicos relacionados ao trabalho: casos extremos de ansiedade, síndrome do pânico e burnout. Algumas fizeram um esforço genuíno para treinar suas lideranças em como identificar dores da alma de seus colaboradores e saber como dar suporte adequado nesses momentos. Muitos desses programas continuam ativos. Mas com que empenho? 

 

Não esquenta: a IA vai resolver todos os nossos males. Concorda? 

O furor criado pela IA é um fenômeno previsível. Quem já usou sabe que tem poder de mudar a forma como trabalhamos. Tem muita coisa nesse assunto que ainda não está clara, e isso dito por gente de primeira grandeza, enfiado até pescoço no mundo da tecnologia. Como disse o professor Silvio Meira do Porto Digital em Recife em um evento recente promovido no Itaú Cubo aqui em São Paulo, ainda não sabemos quais as consequências desse avanço para as pessoas. Sequer sabemos exatamente como se dará essa mistura entre pessoas e tecnologia, para gerar efeitos duradouros positivos e sustentáveis. É um "vamo-que-vamo" digno de trio elétrico em época de Carnaval em Salvador. 

Por isso, volto com a minha dúvida: por que as empresas e suas áreas de RH gostam de valorizar a moda, em vez de potencializar as lições aprendidas e as histórias de sucesso nas batalhas vencidas? Mais: por que deixamos de aproveitar esses momentos ímpares da história, onde fenômenos disruptivos criam condições extremamente positivas para a aquisição de novos comportamentos e habilidades, para avançar em uma agenda sólida para o futuro? 

Eu adoraria ver as empresas e as áreas de RH aproveitando essa nova chance para dar um passo consistente naquilo que é realmente importante: pessoas. Não é a IA que vai gerar mais lucratividade nem produtividade. São as pessoas, capazes de fazer outras pessoas abandonarem velhos hábitos e adquirir novos. Nas empresas, as/os profissionais que convidam e estimulam as pessoas ao novo, fazendo-as confiar em si mesmas, mesmo diante do caos e das incertezas, têm nome: LÍDERES. 

 

A liderança é um asset que precisa ser nutrido e multiplicado 

Preparar nossas lideranças para fazer o que precisam fazer requer tempo, investimento e foco. Não é um programinha de 8 horas, espremido em uma agenda apertada de um evento motivacional de final de semana, que mudará o jogo. Nem promoverá melhorias significativas nas habilidades de liderança de suas equipes. Seja para enfrentar uma pandemia, ou mesmo para conviver com as incertezas da introdução de uma nova tecnologia disruptiva como a IA, serão as lideranças que ajudarão a transformar caos em ouro. 

Os fundamentos da liderança continuam os mesmos, pois têm a ver com uma 

relação entre seres humanos. Criar conexão, fundamentada na confiança, que 

permita às pessoas enfrentarem riscos e se lançarem em caminhos que elas não têm exatamente noção de onde vão levá-las, é o coração dessa complexa e extraordinária habilidade chamada liderança. 

O entusiasmo, o engajamento, o ownership, a capacidade de trabalhar de forma cooperativa, em equipes que sabem pensar criativamente em grupo, são produtos de uma liderança preparada, segura de si e motivada. 

Só lideranças com confiança sobre o que se espera delas, com noção clara dos seus propósitos e como estes se entrelaçam com os das empresas onde trabalham, podem fazer isso. 

 

Escrito por: 

Marcelo Egéa | marcelo@sertotal.com | +55 11 9 8116.5577 | 

www.linkedin.com/in/marceloegeam 

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