Pandemia latente
A sociedade brasileira enfrenta uma pandemia cruel, que se manifesta de forma assustadora. Não se trata do novo coronavírus, mas do preconceito, da intolerância e da ignorância, que têm saído de seu estado latente para adentrar no discurso coletivo, de forma raivosa.
O caso mais recente é o da criança de 10 anos, estuprada desde os seis e que estava grávida de cinco meses. No foco da questão não estava o crime hediondo, cometido por alguém de sua convivência familiar — violência extrema dentro do próprio lar — mas sim o aborto legal, alvo de extremistas ditos religiosos que colocam suas crenças e convicções morais inversas à frente de qualquer humanismo.
Não pretendo adentrar em questões de bioética, debater sobre a formação da vida etc., nem de liberdade de expressão, esta não acobertada pelo ódio direcionado. E sim no ato em si, expressão não da liberdade, mas da opressão.
O aborto neste caso era um direito, independente de qualquer autorização judicial. O SUS possui protocolos próprios, que não foram observados. Lamenta-se a perda de uma possível futura vida, mas não daquela que já se foi: ali jazia uma criança de 10 anos, condenada por vozes vis que a chamaram de assassina. Vitimada duas vezes, violada duplamente. Espera-se de um grupo religioso compreensão e amor. Afeto. Solidariedade. Nada disso esteve presente. Por isso descarto serem representantes de qualquer religião. Também não digo que eram conservadores. A classificação está aquém destes rótulos. Eram pessoas que valorizam o desprezo... pelas pessoas. O adjetivo humano se perdera.
Não há dúvidas de que essa é apenas uma amostra da contaminação pandêmica que vivemos. Mas que precisa ser reprimida com a mesma velocidade com que se dissemina. Seja pela própria sociedade, atenta contra as intransigências destes grupos, seja pela aplicação efetiva da lei, mostrando que o mal não deve ser banalizado.
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Na imagem, charge da cartunista Laerte, publicada em 18 de agosto de 2020 na Folha de S. Paulo. Meu agradecimento especial a Laerte pela autorização em poder compartilhá-la em meu perfil pessoal.