Pele de Foca

Pele de Foca

Começo a contar a estória e sinto o frio da espuma salgada que bate violentamente nas rochas e me apanha o rosto. Aconchego-me mais à roupa, escudando-me do gelo húmido que deixa a pele molhada e os ossos doridos.

Conheço, estranhamente, a alma do jovem que - diferente dos outros homens da aldeia - se sentava no cimo do penhasco, ou na areia da praia, observando o mar enquanto percebia que o vazio da sua alma era impossível de preencher. Que não existia nada conhecido capaz de lhe trazer alegria ou completude. E como o vislumbre de uma mulher diferente, feita de outra matéria, lhe trouxe fogo e desnorteio, a ponto de o fazer esconder-lhe aquilo que mais real havia nela.

A ela conheço-a bem. Quem não conhece?

A que aceitou seguir o caminho, cumprir os requisitos, doar-se em amor a ponto de esquecer quem era. Fazer as escolhas óbvias, deixar o tempo passar, escutar a alma gritar e chamar-lhe cansaço, mau feito, ou síndrome pré-menstrual....

E um dia acordou de olhos baços e cabelo quebradiço, viu-se ao espelho e percebeu que a sua pele perdera o brilho de outrora. E que isso nada tinha a ver com o tempo, ou a idade. Somente com a pele que fora esquecida.

As crises de busca da pele perdida têm pouco a ver com o envelhecimento, o sucesso ou a falta dele ou relações que não funcionam ou que se perderam.

A busca de pele tem a ver com o sonho. Com a canção da alma, que escutávamos quando o mundo ainda era capaz de nos encantar. Com o sorriso mais audaz e, ao mesmo tempo, inocente. Com a dança e a liberdade de fechar os olhos para nos vermos dançar. Com trazer o ar para dentro dentro, numa inspiração profunda, e, num arrepio que chega ao âmago, sentir que pertencíamos à Vida, mais do que esta nos Pertence. Tem a ver com o Mistério e o Milagre e darmo-nos conta de que estamos vivos.

A busca de pele prende-se a com o resgatar da nossa estória, de quem somos, de onde viemos e a que lugares pertencemos. E sim, por vezes é necessário mergulhar no oceano e dizer adeus ao conhecido, para voltar a existir.

A selkie sempre foi íntima comigo. Estranhamente íntima, tal como o jovem que parecia ter poesia no olhar, anseio por algo que pudesse despertar a vida dentro de si e, com o tempo, se esquece de quem foi para manter a estabilidade do seu mundo conhecido. Talvez também se tenha perdido no caminho. Talvez, no gesto desvairado de levar a mulher do mar para casa, ambos tenham perdido a pele.

A estória dá-nos folgo, alento, ressoa como a canção interna e impulsiona-nos a escutar dentro. Como todas as boas estórias, é suficiente para despertar o mítico e levar-nos para o caminho.

Mas... e depois? O que se passa no fundo do mar? É que nunca se regressa ao lugar de onde partimos um dia....

Caber-nos-á a “nossa pele”? Será dócil, o caminho de voltar a pertencer-nos, vestir a pele a um corpo-alma transformado pelo tempo, pelas memórias, pelas cicatrizes das estórias? É possível regressar à terra, de pele bem visível colocada sobre o corpo e, ainda assim, caminhar? Ou, pele recuperada, guardamo-nos nas ondas sem nunca mais nos despirmos em noites de luar, para não ficarmos vulneráveis?

Pele de foca ensina que é necessário resgatar a Pele que é nossa para que voltemos a saber respirar. Por vezes com preços altos, dedos apontados ou solidão profunda.

Ainda há caminho para trilhar... como usar a pele que nos cabe, voltando a dançar na praia? Como a despir, sabendo que já não poderá ser-nos tirada? Como viajar por entre o mar ou a terra, vestida de selkie ou de mulher, não deixando nunca de ser inteira?

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