Pequeno tratado sobre a feiura urbana
Sábado, 14/04/2016
O Globo
Opinião - coluna Washington Fajardo
Pequeno tratado sobre a feiura urbana
Urge a criação e manutenção de cidades mais harmônicas, ou continuaremos a ser ‘rotos’ gozando sobre quem é menos ‘rasgado’ no show de horrores urbano nacional
Assusta pensar que a única motivação para vazar conversa entre o ex-presidente Lula e o prefeito Eduardo Paes teria sido ridicularizar este, já que não havia ali fato concreto sobre nada, além do sarcasmo que usamos para fazer graça numa conversa íntima, que ganha face vil quando exposta ao foro público e sujeita à moral.
O moralismo raramente serve para edificar princípios no espaço público, onde deveriam a razão e a lei operar.
Então, como oportunidade racional, o que podemos dizer sobre a feiura das cidades pequenas brasileiras?
Diferentemente do que exposto na conversa, Itaipava é, urbanisticamente, tão mal formulada e executada quanto Maricá, Atibaia, São Pedro da Aldeia ou Araruama.
A diferença é que — eis nossa leitura equivocada sobre os lugares — Itaipava é caracterizada por espaços privados mais caros, mas seus espaços públicos são tão ruins quanto outras cidades que entendemos “feias”.
Assim funciona também com os bairros: o espaço público da Gávea, no Rio, é tão mal constituído quanto o de Ramos. Na verdade, se quiséssemos adotar um parâmetro, as áreas configuradas como Áreas de Proteção do Ambiente Cultural, as Apacs, são as mais harmônicas no que consta a articulação entre espaço público, ambiente construído, arborização e desenho urbano, constituindo o que chamamos uma boa “paisagem urbana”.
Marechal Hermes, Grajaú, ou a área da Rua General Glicério, em Laranjeiras, todas Apacs, são urbanisticamente agradáveis, apreciáveis, e com elevados padrões de qualidade construída, o que chamaríamos simplesmente de “bonitas”.
Felizmente o Rio de Janeiro tem 40 dessas áreas preservadas e que poderiam, ou deveriam, constituir-se em lições sobre como fazer uma boa cidade. Raramente, no futuro, conseguirão preservar algo na região da Barra da Tijuca como harmônico, salvo a boa composição urbana do Jardim Oceânico. O modernismo foi desolador como pensamento capaz de produzir boa cidade, que somente a maturação do tempo confirma.
Voltemos à feiura. Por que as cidades pequenas brasileiras ficaram tão horríveis? Por que os lugares que deveriam concentrar a pequena escala, e com isso, um certo bucolismo, ou o pitoresco, converteram-se em concentrações bisonhas do grotesco, do desleixo com o pedestre, com o coletivo, do inferno arquitetônico e da paisagem urbana desleixada, marcada por congestão de letreiros graficamente estúpidos? Se nossas cidades pequenas estão assim, estamos mal nas grandes cidades, não tenham dúvida.
Dos 10 aos 16 anos morei em São Pedro da Aldeia, e estudava em Cabo Frio, onde estão meus amigos de infância, onde residem hoje meus pais, e onde procuro ir o máximo que posso (pouco, recentemente, infelizmente) como lugares que são reais mas que também são oportunidades de contato com minha memória e identidade. Sou e serei sempre uma pessoa de cidade pequena. Se carrego as melhores recordações de aventuras de bicicleta nas salinas, de liberdade infinita, dos pés descalços, correndo e voando com o corpo solto no espaço, saltando no mar, nas dunas, nas árvores, nos muros das casas, e em todos os recantos que as pequenas cidades oferecem, sei como urbanista que vão mal esses lugares, e cada vez menos oferecerão qualidades às gerações futuras.
A memória poderia ajudar mais a configurar as cidades. Entretanto, nosso julgo formulado pelo uso privado dos lugares, e seu preço, vêm determinando o planejamento urbano. Onde deveria imperar a dimensão coletiva, e suas tradições, estamos fazendo com que todas nossas cidades, pequenas e grandes, sejam orientadas por valores privados, anacronicamente sustentados por conceitos modernistas de produto e organização espacial industrial. Jamais resultará em harmonia.
A autonomia municipal, conferida pela Constituição de 1988, resultou demasiadamente em localismo político para questões territoriais. Máquinas públicas inchadas, com câmaras de vereadores obesas e inertes, e a obrigação de execução de planos diretores para municípios acima de 20 mil habitantes como condição de acesso a recursos federais vêm criando políticas urbanas inócuas, reforçando nossas cidades como produtos e não como processos. Não existem urbanistas acompanhando os municípios. Conceitos de paisagem urbana, de desenho urbano, de planejamento territorial integrado, de zoneamento inclusivo, de moradia acessível, de espaço público universal não são implementados, sequer considerados, muito menos monitorados.
O “preço” urbano mais valioso é o apreço pelo espaço público.
A agenda urbana é crítica. Está na gênese da feiura da política atual. Urge a criação, e principalmente, a manutenção de cidades mais harmônicas, ou continuaremos a ser todos “rotos” gozando sobre quem é menos “rasgado” no show de horrores urbano nacional.
Washington Fajardo é arquiteto e urbanista
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8 aItaipava e um distrito de Petrópolis. Não é uma cidade.