Por uma Lei Unificada da Doação Incentivada (LUDI)
Nessa semana recebi em um grupo de WhatsApp a imagem abaixo, extraída das páginas da edição de abril da revista piauí (n. 211).
Apesar da boa vontade e da iniciativa, eu fiquei negativamente surpreso com o que vi:
sete parágrafos inteiros para explicar como uma pessoa pode apoiar o Hospital Pequeno Principe (HPP) com o seu Imposto de Renda (IR). Não são um, nem dois parágrafos, são SETE!
Eu adoro o HPP, e eles escreveram da melhor forma possível, só que em um contexto em que as pessoas já não têm o hábito de ajudar as ONGs com parte do seu IR, é ainda pior se o processo para isso for tão complexo.
Talvez por isso, não é de surpreender que até a Receita Federal faça campanha para que as pessoas utilizem mais o mecanismo: do potencial de 11 bilhões e 600 milhões de reais que poderiam ter sido transferidos do Imposto de Renda das pessoas para as organizações sem fins lucrativos, somente 280 milhões o foram. É menos de 3%, ou seja, quase nada.
São mais de 11 bilhões de reais todos os anos que poderiam estar construindo um país melhor, mais justo e solidário.
Essa realidade não vai mudar tão cedo. Podem fazer campanha à vontade que o brasileiro vai continuar destinando pouco do seu imposto para fazer o bem, e o motivo para isso é bem claro: doar o IR é um inferno.
OK, "exageros do JP à parte", quem trabalha com captação de recursos sabe que doar tem que ser fácil. A mensagem tem que ser simples, o pedido tem que ser direto, o processo tem que ser ágil.
Se a gente bobear um segundo, pimba, perdemos o doador.
E é exatamente desse mal que sofremos quando falamos da utilização do imposto de renda para a filantropia. Tudo é muito difícil.
Veja, mecanismos de incentivo à doação por meio da utilização de impostos são comuns no mundo todo. Muitas pessoas dizem inclusive que "nos Estados Unidos é fácil ter mais de 1 trilhão de reais em doações para ONGs todos os anos, já que lá elas são abatidas do imposto".
Parte da afirmação está correta, e realmente nos EUA há um mecanismo muito utilizado para redução do imposto de renda com doações. O argumento, porém, esconde um equívoco simples: nos Estados Unidos as pessoas não doam porque há incentivo fiscal (apenas uma pequena parte da doação é abatida do imposto), as pessoas doam ainda mais em razão dos incentivos (estima-se que dois terços do total de doações realizadas nos EUA tenha uma parte abatida no Imposto de Renda).
Bemm, no fundo a realidade é essa:
nosso modelo de incentivo à doação por meio do IR não funciona.
O que então está errado?
Muitas coisas. As principais:
Esta última característica é provavelmente a mais equivocada de todas: ainda que o mecanismo do incentivo fiscal por meio do IR seja importante, ele deveria existir para estimular a doação e não para converter integralmente o imposto abatido em doação.
Para fins de comparação, nos Estados Unidos (praticamente um dos poucos países onde a gente encontra essa informação), a média do que é abatido é de 17%. Ou seja, de cada 100 dólares doados, os americanos têm que entrar com 83 dólares do seu próprio bolso, e o governo permite reduzir outros 17 do Imposto de Renda devido. É uma diferença gritante para o Brasil.
E como seria um modelo ideal?
Do ponto de vista conceitual, o abatimento da doação no Imposto de Renda deveria ter regras muito simples:
Olha como é simples. Abaixo segue um exemplo de um recibo que o GlobalGiving me enviou no começo de ano, referente às doações que fiz por meio deles em 2023. Se tivéssemos essa mesma estrutura no Brasil, eu pegaria esse recibo, lançaria no Imposto de Renda e pronto, estaria ao mesmo tempo pagando menos imposto e fazendo mais doações.
A decisão é minha, o poder de fazer a diferença está na mão de quem doa, e todas as ONGs passam a poder receber doação com incentivo fiscal.
Lei Unificada da Doação Incentivada – LUDI
Como mencionado acima, um novo e descomplicado modelo de doações com abatimento no Imposto de Renda seria resultado de uma lei única, e não dessa loucura que é hoje, com leis específicas para algumas causas apenas (Lei Rouanet, Lei do Audiovisual, Pronom, etc.)
Para facilitar a disseminação da proposta estou já sugerindo um nome para essa nova lei: Lei Unificada da Doação Incentivada.
Até rimou, né? Pois eu criei até um acrônimo para ela – LUDI.
Fácil de entender, fácil de implementar (se já é assim para mensalidades escolares e consultas médicas, por que não o seria para doações? – e ai de quem me disser que iriam desconfiar das ONGs!) e uma forma de democratizar as doações e as causas por todo o país.
O futuro
Como já comentei, hoje é uma loucura doar e abater do Imposto de Renda, e quase ninguém o faz. É complexo, é burocrático, é ineficiente.
Conseguir aprovar uma lei única e abrangente é difícil, mas deveria ser a bandeira de toda a filantropia brasileira.
Infelizmente ninguém fala disso, alguns por sequer conhecerem o assunto, e outros por estarem bastante confortáveis na sua posição de abater 100% do que doam.
O resultado disso?
Prejuízo para o país inteiro, que poderia ter muitos bilhões de reais a mais sendo doado todos os anos e não tem por que estamos presos em um modelo arcaico, conservador e que beneficia poucos.
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Se você que me lê está interessado (ou interessada) em mudar para melhor as estruturas da filantropia brasileira, tem uma vontade real de ampliar as doações no país, e tem recursos financeiros para apoiar uma iniciativa como essa, não deixe para depois: comece agora a trabalhar pela elaboração e aprovação de um projeto de lei que transforme de verdade o mecanismo de doação com incentivo no Imposto de Renda.
Eu só tenho minhas palavras, e não disponho das ferramentas para tocar um projeto desses, mas uma coisa posso garantir: vou te apoiar!
A proposta da LUDI deveria ser uma prioridade da filantropia brasileira, se não agora pelo menos depois que se encerrarem as discussões da reforma trabalhista.
Caso se torne realidade um dia, vai fazer com que a doação incentiva vire um mecanismo mais democrático, porém ainda não o tornaria universal: somente indivíduos que preenchem o formulário completo da declaração do Imposto de Renda teriam a opção desse benefício (algo em torno de 12 milhões de pessoas atualmente).
Eu não mexeria com isso agora – é mais fácil primeiro modernizarnos o mecanismo e depois estudar como torná-la acessível a quem declara pelo formulário unificado.
Existe certa discussão se o certo é falar “doação” ou “destinação” de imposto quando estamos tratando do IR. Essa discussão para mim é irrelevante e só existe no Brasil porque podemos abater 100% do total doado.
Neste texto eu inclusive uso as duas expressões em vários momentos.
Quem quiser continuar falando exclusivamente “destinação” pode ir por esse caminho, não tem problema algum. Da minha parte, vou seguir usando expressões que incentivem a generosidade e que sejam mais fácil de serem entendidas.
Perder tempo explicando às pessoas que o que elas fazem é “destinação” e não “doação” é algo que definitivamente não farei. Assim não perco meu tempo e também não perco o doador.
Olha, eu não sou contador e nem advogado. Se você é uma das duas coisas – ou as duas coisas ao mesmo tempo – e encontrou inconsistências técnicas no meu texto, não tem problema algum. Fique à vontade para apontá-las, inclusive.
Eu tentei não entrar em detalhes sobre a atual legislação brasileira porque eu a acho tão ruim que nunca fiz questão de entender cada vírgula das regras das doações incentivadas via Imposto de Renda.
O que busquei aqui foi apresentar uma proposta de um conceito novo, uma ideia para facilitar e ampliar as doações incentivadas no país, democratizando o mecanismo e transferindo o poder da decisão para quem doa.
Sei que é possível o que proponho porque é assim que funciona em dezenas de países pelo mundo. Mas a parte técnica e jurídica de construir essa proposta eu deixo com quem entende mesmo.
Este é o texto principal da edição de abril do boletim Filantropia à Brasileira. Era para ter saído mais cedo, mas só está sendo publicado na última hora do mês porque minha caçula, a esportista da família, quebrou o braço ao treinar skate para um campeonato. Foi a segunda vez que ela quebra o mesmo braço em uma queda. Coisas da vida. Mês que vem (maio) o boletim chega mais cedo!
O direito de discordar na filantropia
Ano passado escrevi um artigo que gerou certa controvérsia no setor.
A maior parte das pessoas entendeu a proposta do texto e se ofereceu para dialogar com ele, concordando ou discordando dos meus argumentos. Alguns poucos, porém, tentaram promover meu cancelamento - ou então me "educar" sobre o que posso ou não escrever.
Vendo essa repercussão, o Fábio Deboni me convidou para participar de uma edição do seu podcast Impacto na Encruzilhada, que debate temas do que o Fábio chama de “fantástica fábrica do impacto socioambiental”. O podcast é hoje o mais prolífico e interessante do setor.
O episódio de número 143, para o qual fui convidado, teve como título O direito de discordar na filantropia.
A escolha do nome para o episódio foi uma sacada genial do Fábio, porque se há um espaço em que deveríamos ser livres para expressar nossas opiniões, mesmo quando elas são diferentes do que a maioria pensa, é no setor sem fins lucrativos – e de impacto social.
Mas também na filantropia há “ideias hegemônicas”, clichês, chavões, frases feitas e visões de mundo que todos devem aderir sem questionar.
No episódio eu contei um pouco sobre como foi lidar com essa situação e falei também sobre a captação de recursos e outros assuntos interessantes. Vale a pena ouvir!
Meu livro Sustentabilidade econômica das organizações da sociedade civil continua disponível para ser comprado em versão "ebook" para o Kindle acessando aqui, ou nas lojas do Google, Apple ou Kobo. Há edições impressas dele comigo (e só comigo), e posso te entregar em mãos se você estiver ou vier para São Paulo. É só marcar!
Quer me ajudar a manter este trabalho de pesquisa e reflexão sobre a filantropia brasileira, sobre as ONGs, a captação de recursos e muito mais?
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A quem tem doado, agradeço demais! Vocês são incríveis!
Este Boletim é uma produção autoral minha, publicado pelo menos uma vez por mês, e com conteúdo relevante sobre filantropia, captação de recursos, doações, e demais temas relevantes à generosidade e ao mundo das instituições sem fins lucrativos. Todos os textos expressam a minha opinião (a não ser quando claramente informado) e podem ser reproduzidos livremente, desde que citada a fonte. Estou à disposição para convites para bate-papos, palestras, cursos e novos textos, e posso ser encontrado aqui no LinkedIn ou no email jpverg@hotmail.com.
Presidente | ONG É Por Amor
6 mMuito bom! Levei seu texto para uma rede de OSCs que faço parte e tem muita gente do governo federal. Está gerando um certo movimento por lá com sugestões de levar seu texto para uma discussão parlamentar. Quem sabe você não lançou uma semente de mudança? Espero que sim!
Gerente de projetos sociais; captação de recursos
6 mApoiado! Te enviarei um e-mail
Compliance | Proteção de Dados | Direito | Liderança | ESG | Responsabilidade Social
7 mEsse tema é muito importante e uma Lei Unificada solucionaria outras questões como Pronas e pronon, programas tão importantes e repletos de desafios.
Diretora Executiva @ TETO Brasil | 500 Pessoas Mais Influentes da América Latina pela BloombergLinea | Speaker | Top Voice
7 mPrecisamos ser mais eficientes e efetivos! Ótima provocação!!!
Pesquisadora Sênior em Políticas Sociais e Sustentabilidade | Colaborando com Grupos de Pesquisa no Brasil, Europa e EUA.
7 mApoio totalmente.