Porquê todo nós devemos nos preocupar com o exército de perfis falsos nas redes sociais
As redes sociais estão em contante transformação e enquanto somos inundados com artigos sobre as maiores tendências e expectativas para o ano que se inicia, cresce o número de perfis falsos e sua influência nas nossas vidas beira o assombro.
Em Outubro de 2018 quando a Folha de São Paulo publicou um artigo com a denuncia de que um grupo de empresários contratou pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp, contratos esses que chegaram a casa dos milhões, mais do que um escândalo político de proporções Bíblicas à veio à tona, todo um mercado, até então discreto e em muitos casos sigiloso, foi trazido à luz: o da indústria de perfis falsos.
Embora a prática (de criar e administrar contas falsas) já seja conhecida, até pouco tempo não se falava em sua existência em tal escala. Em Abril de 2018, o jornal El País detalhou como toda uma indústria integrada por empresas de consultoria e trabalhadores freelance no México presta serviço a políticos, corporações, artistas, esportistas, advogados e micro empresários com o objetivo de inflar sua vaidade aparentando uma falsa popularidade nas redes sociais, além, é claro, de manipular a opinião pública, lançando campanhas de desinformação.
O assunto é sério e a influência real dessa indústria nas nossas vidas é cada vez mais profunda.
Mais do que afetar o futuro político e social de uma nação, a criação e administração de perfis falsos tem impacto direto na atuação de marcas e influenciadores. A "praga" dos perfis falsos distorce boa parte do conteúdo que vemos na Internet atualmente, sua atuação pode afetar diretamente como consumimos conteúdo e entre inúmeros outros usos, os perfis falsos também podem ser usados para:
- Aumentar a pontuação de aplicativos e produtos em lojas como Google Store, Apple App Store e Amazon,
- Aumentar o número de visualizações em vídeos no YouTube,
- Inflar páginas e perfis de celebridades e marcas em ascensão,
- Enganar usuários de aplicativos de encontros, como Tinder,
- Alterar o fluxo do trânsito de carros em aplicativos como Waze.
No artigo do jornal El País, Carlos Merlo, de 29 anos, que dirige a Victory Lab, uma empresa de consultoria de marketing digital que prosperou graças ao negócio dos perfis falsos e do spam político nas redes sociais, explica que trabalha para poderosos clientes políticos no México. Ele tem sob suas ordens uma equipe de jovens que criam as contas falsas, programam conteúdo automático e interagem com usuários reais. Outros funcionários desse negócio trabalham de casa em seu tempo livre para ter uma renda extra.
É possível comprar 1.000 “curtidas” no Facebook por entre 5 e 20 euros (21 e 83 reais). Mas qual é a origem dos seguidores falsos que infestaram as redes? Normalmente eles tem origem em países pobres, com pouco controle, sem direitos trabalhistas e, naturalmente, muita mão de obra barata.
Segundo o artigo, como 5 a 20 euros não se trata de muito dinheiro por um serviço desse tipo, a demanda é enorme e, por isso, às vezes chovem oportunidades e novos clientes. “Isso mudou a vida de muita gente”, afirmou Álvaro López Sepúlveda, um chileno que hoje se dedica ao trabalho em tempo integral. Ele afirmou possuir milhares de contas falsas no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube, e garantiu faturar em alguns meses mais de 2.000 dólares (6.700 reais) graças à sua carteira de clientes na Espanha, Colômbia, EUA e Chile, entre outros países.
O Brasil, obviamente, não fica atrás.
Em Dezembro de 2017 a BBC Brasil desmascarou o verdadeiro exército de perfis falsos que já estavam sendo usados para influenciar eleições no Brasil. A estratégia de manipulação eleitoral e de opinião pública nas redes sociais aplicada por aqui foi similar à usada pelos russos nas eleições americanas, e já existiria no Brasil pelo menos desde 2012. A BBC Brasil entrevistou quatro pessoas que dizem ser ex-funcionários da empresa com base no Rio de Janeiro e reuniu vasto material com o histórico da atividade online de mais de 100 perfis fakes e identificou 13 políticos que teriam se beneficiado das atividades desses perfis.
Fábio Malini, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo afirmou que:
"Os ciborgues ou personas geram cortinas de fumaça, orientando discussões para determinados temas, atacando adversários políticos e criando rumores, com clima de 'já ganhou' ou 'já perdeu'", exploram assim o chamado "comportamento de manada".
Os funcionários, segundo os relatos publicados pela BBC Brasil, ficavam em diferentes Estados do país, trabalhando de casa e sendo monitorados de perto por Skype. Esses jovens eram chamados na empresa de "ativadores" e recebiam de profissionais mais graduados uma "ficha técnica" com perfis prontos do que chamavam de "personas". Esses documentos continham foto, nome e história de cada uma dessas personas - de onde eram, se eram casados, se tinham filhos e quais eram seus gostos, hobbies e profissão. Ao "ativar" os perfis falsos, os jovens alimentavam as contas com conteúdo diverso, dando prosseguimento à narrativa criada e mesclando publicações sobre sua rotina com postagens de apoio a políticos específicos.
Um "ativador" de perfis falsos recebia por volta de R$ 800 mensais quando começava a trabalhar na empresa, já nas eleições de 2014, o salário teria subido para até R$ 2 mil.
"Ou vencíamos pelo volume, já que a nossa quantidade de posts era muito maior do que o público em geral conseguia contra-argumentar, ou conseguíamos estimular pessoas reais, militâncias, a comprarem nossa briga. Criávamos uma noção de maioria", disse a reportagem um dos ex-funcionários entrevistados.
A internet, meus caros amigos, claramente descarrilhou.
As redes sociais estão se transformando em um campo de guerra onde influência real e paga disputam cada vez mais, ombro a ombro, a NOSSA atenção e o NOSSO consumo. Estamos todos, invariavelmente, em algum nível, sendo manipulados. A Internet, que nasceu como um grande avanço e a solução de tantos problemas, parece ter degenerado em usuários infelizes, discursos de ódio, roubo de dados e disseminação descarada de mentiras com objetivos egoístas e nefastos.
Os benefícios da Internet de hoje estão cada vez mais acompanhados de riscos em demasia, nosso bem-estar emocional, nossa privacidade, nossa democracia, nossos direitos. O conteúdo grátis tem seu custo cada vez mais alto em nossas vidas. Mas e então, qual seria a solução para tudo isso? Uma pergunta muito simples com uma resposta muito complexa.
Pode-se dizer que, embora o caminho ainda esteja sendo traçado, para que tenhamos uma Internet menos tóxica, mais real e até confiável, precisaremos passar pela criação de comitês de transparência e ética, pelo comprometimento de empresas e governos com maior respeito ao usuário e seus dados. A Internet precisa de códigos éticos internacionais que nos ajudem a fiscalizar e punir atuações questionáveis e antiéticas nas redes e precisamos que as constituições que protegem os direitos dos cidadãos sejam atualizadas, cobrindo e punindo de forma apropriada os crimes e violações online.
Embora empresas, programadores, pesquisadores e intelectuais tentem mudar o rumo da Internet no mundo, pouco será realizado se os usuários não fizerem o mesmo. A mudança começa conosco, com o nosso pensamento crítico e com a nossa moral (que em sentido geral, ainda necessita de muitos ajustes).
Não nos ocorreu, lá no começo de tudo, quando a Internet ainda era lenta e discada (quem se lembra?) e as portas para esse mundo se abriram diante de nós, não pensamos que talvez os direitos humanos devessem ter uma parte online que atuasse em defesa dos nossos dados, da nossa sanidade e da nossa democracia. Não nos ocorreu que tudo aquilo que nós somos, consumimos e pensamos estivesse em risco. Nos empolgamos demais, nos enganamos demais, nos alimentamos demais de conteúdo duvidoso e demos palanque a idiotas demais ao ponto que na produção de certos conteúdos específicos, hoje infelizmente já são maioria. Não pensamos nas consequências e não demos valor aos nossos dados, nos afogamos em memes e vídeos engraçados, nos esquecemos dos custos do nosso entretenimento gratuito e agora esse custo vem nos assombrar sob a gigantesca forma de governos manipuladores e totalitaristas. Esse custo nos assombra sob a forma de mentiras, de vergonha, de descaso e desespero.
Não pensamos no quanto poderia ser tirado de nós pelo simples fato de estarmos conectados. Talvez seja essa a hora de pensar.