PORTO DA PERDIÇÃO

PORTO DA PERDIÇÃO

Hoje começo a contar uma estória. Que poderia muito bem ser uma história. A estória de uma vida, ou melhor, parte dela. A mais relevante. Uma estória que poderia ter acontecido comigo, com você, com alguma pessoa próxima; mas aqui acontece com um personagem fictício. Aliás, todos os são. Talvez algumas das circunstâncias da trama não sejam fictícias. O cenário, certamente não é, talvez seja exagerado.

E qual o propósito em contar essa estória? Mostrar algo, algumas lições de vida. Retratar o Brasil e o mundo em tempos recentes (ou nem tanto) e como o ser humano pode reagir diante de circunstâncias idênticas, ou como as cria em alguns casos.

Todos os nomes aqui citados não possuem conexões com pessoas reais. Quaisquer semelhanças serão mera coincidência.

Capítulo 1

Wall Street, Nova Iorque, meados de 2007

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Aqui está ele. Como poderia ter chego tão longe? Nem ele mesmo poderia prever, explicar sim, mas prever, jamais. Justo ele; o peixeiro, o quase favelado, o macuqueiro. Mais um brasileiro que tinha tudo para dar errado, mas ousou contrariar as estatísticas. Quantos companheiros de infância e juventude ficaram pelo caminho? Quantos perderam-se no crime? Quantos, apesar de manterem-se íntegros e trabalhadores, permaneceram naquele destino que parece irremediavelmente destinado aos brasileiros com origens comuns a sua? Destino esse que, mesmo que sem saber ao certo no inicio, ele ousou desafiar e negar. E pensar que tudo começara meio que por acaso.

Mario Bentes, vulgo Marinho. Um típico nativo da Bacia do Macuco. Filho, neto, sobrinho, irmão de pequenos vendedores de pescados. Alguém predestinado a acabar os dias limpando peixe e camarão, numa barraca de rua em condições duvidosas de higiene. Tal qual seus ancestrais mais próximos, até porque, dos menos próximos, quase nada se sabia. Moleque criado de pés no chão, instruído em escola pública, educado pela vida. Poderia ter sido mais um a cair na tentação do dinheiro fácil (ou nem tanto), dos golpes, dos furtos. Poderia ter tornado-se um toxicômano. Ou simplesmente seguido honestamente o destino de seus parentes na barraca de peixe. Talvez, dedicado se mais aos estudos e arrumando um emprego nas Docas ou na Cosipa, ou abraçado a carreira militar. Ou enveredado se pelo Setor Público.

Entretanto, Marinho pensava grande, ainda que meio inconscientemente no início. Com a perda do pai na adolescência, viu-se junto com o irmão mais velho, Adalberto (vulgo Betinho) em maus lençóis. A barraca de peixe “devagar”. Dívidas de jogo. O cenário perfeito para o fracasso. Porém, os irmãos conseguiram superar tudo. Quando tudo parecia resolvido, veio a morte da mãe. A vizinhança comentava que a vida dos irmãos Bentes parecia mais uma novela mexicana. Mas os dois seguiram firme. Levantaram-se, sacudiram a poeira e deram a volta por cima.

Marinho estava sempre um passo a frente dos demais. Devido a uma dificuldade que as famílias encontravam-se para comprar carne bovina em um determinado momento, ele enxergou uma oportunidade: entrega de pescados a domicilio. Peixe fresco, limpo e pronto para ir para a panela, entregue na porta de casa. E a preço acessível. Marinho adquiriu uma velha bicicleta e uma caixa de isopor. Levantava de madrugada, antes do sol raiar; primeiro comprava gelo, abastecia a caixa com pescado adquirido e preparado no dia anterior e ia a luta. Dois anos trabalhando de sol a sol; sem folgas, de segunda a segunda; sábado, domingos e feriados eram dias como outros quaisquer. Nesse período, trocou a bicicleta por um triciclo equipado com uma caixa térmica maior; mais um ano e um segundo triciclo, “pilotado” por um primo; mais dois anos, um furgão refrigerado. Em uma década, a primeira peixaria e uma pequena frota de veículos climatizados. Além das famílias do Macuco e adjacências; Marinho atendia a restaurantes, hotéis, navios. Empregava parentes, amigos e logo tornou-se o maior empregador do bairro. Com a rede de contatos que tinha no mercado, foi ampliando cada vez mais seus negócios. Logo vieram fábricas de gelo, armazéns, seus próprios barco de pesca. Vinte anos após dar as primeiras pedaladas, Marinho tinha construído um império que o colocava entre os homens mais ricos do Brasil.

E o peixeiro da Bacia agora adentrava a Bolsa de Valores de Nova Iorque, elegantemente embalado em um terno Armani e sapatos italianos de 500 dólares. Muito pouco diferenciado dos senhores que costumavam circular diariamente por aquele recinto. Dois anos antes, sua holding abrira o capital na Bolsa de Valores brasileira; porém o sucesso levou Marinho e suas empresas a Wall Street. Marinho tinha um “Toque de Midas”. Começou duas décadas atrás em cima de uma bicicleta, com dificuldades de equilibrar uma caixa de isopor cheia de peixe e gelo. Agora dirigia uma companhia de pesca, uma transportadora, estaleiros, armazéns; criava ostras, mexilhões e camarões em cativeiros, com a mais alta tecnologia disponível no ramo. Seu Toque de Midas atraia investidores do mundo inteiro. E agora, Marinho da Bacia badalava um sino na tribuna principal da Bolsa de Nova Iorque, anunciando o lançamento das ações de sua holding para o mundo.

 O céu parecia o limite. Porem, repentinamente; o limite tornou-se na realidade, o inferno! Ou assim lhe pareceu.

Aparências. Marinho Bentes causava as melhores. A comovente história do self made man, do típico brasileiro de classe baixa que venceu na vida impressionava a muitos. O garoto que veio praticamente da favela, que largou os estudos na mais tenra idade para limpar peixe e camarão, que transitava pelas ruas de um dos bairros mais carentes de sua cidade oferecendo peixe de porta em porta; agora estampava revistas de negócios e variedades. Circulava pelos salões da mais alta sociedade do país e do exterior. Próximo de figuras de destaque nos meios políticos e econômico, nacional e internacional. Tornou-se um formador de opinião. Casado com uma bela mulher oriunda da tradicional sociedade, de uma respeitável família de corretores de café. Com filhos que apareciam com frequência em colunas sociais e programas de televisão; alguns dos partidos mais disputados no jet set nacional e internacional. Aparentemente, Marinho tinha uma vida perfeita. Aparentemente.

Bacia do Macuco, Santos – SP, meados da década de 80

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- Calor desgraçado!

- Só, mano!

O calendário acabara de marcar o inicio do outono, porém o Sol ignorava esse fato; na prática aquele tórrido verão prolongara-se insistentemente. A Bacia do Macuco, próxima ao cais santista exalava aquele seu aroma típico; aquela mistura de maresia, peixe podre, soja fermentada e enxofre; mistura essa temperada pela fuça dos caminhões que passavam do cais para a cidade e vice versa. Cada sombra disputada a tapa. Esse era o ambiente de trabalho dos irmãos Bentes; Betinho e Marinho. Proprietários de tradicional barraca de pescados, recém herdada do pai recém falecido.

Os negócios andavam devagar. Concorrência com o Mercado de Peixes da Ponta da Praia e com os supermercados. Um plano econômico recentemente lançado pelo governo aumentara o poder aquisitivo da população, que agora consumia carne bovina como nunca antes na história desse país. O peixe tornara-se uma opção menos nobre.

- Betinho, com esse tempo não tem gelo que chegue. Vamo acabar perdendo mercadoria!

- Que tu quer que eu faça, mano? O Mercado da Ponta, os supermercado, a carne mais barata...

- Tem que ter um jeito, sei lá! Tem aquele velho ditado, se Daomé não vai na montanha, a montanha vai a Daomé; ou coisa parecida.

- Que tu quer dizer, moleque?

- Sei lá, se a gente entregasse os peixes já limpos e cortados de porta em porta?

- Pra se pensar isso!

Incrivelmente, o diálogo foi interrompido por um dos poucos fregueses que procuravam a barraca dos Bentes naqueles tempos.

Do outro lado da cidade, na praia do Gonzaga; um jovem casal aproveitava aquele dia, porém as reclamações em relação ao calor eram quase as mesmas dos irmãos Bentes.

- Que decadência essa praia! Pensar que já estive em Ipanema, Porto Seguro e até em Cancun! Se pelo menos fosse no Guarujá...

- Calma, minha gatinha manhosa! A casa do velho lá no condomínio tá quase pronta. E poderia ser pior sabia? Sabe que dia é hoje? Quarta feira! Tá cheio de gente trabalhando, até mesmo na rua, debaixo desse sol. Pelo menos a gente tá curtindo.

- Será que seu pai não vai “encanar” com isso. Tipo, ficar vagabundeando em uma quarta feira...

- Não esquenta não, princesa! Quem trabalha não tem tempo de ser gente. Dá um beijinho aqui!

Em breve esse casal encontrará com Marinho Bentes; o que irá mudar radicalmente a vida de todos.


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