A PRESSA E A PRUDÊNCIA
A gordura dos tempos modernos, lições à esquerda e à direita do poder sobre o controle dos desejos e seus problemas…
Micro Ensaio – Psicossociologia
Amiga da juventude, atualmente, estendendo os braços à maturidade e graças aos interesses do sistema capitalista, a pressa ganhou o nome de velocidade. Eis quando se torna perigosa, assassina e desleal, porque engana o ser que a usa levando-o de encontro ao perigo, e quase sempre ao desastre pela aparente supressão do tempo e da diminuição do espaços, ou será o contrário?
Não importa! A pressa é inimiga da prudência, aquele sentimento de atenção que antecede qualquer perigo e que nos torna aptos a realizar, com certa riqueza de detalhes, as ações que nos proporcionam mais do que a sensação de segurança, mas também o sentido do fazer bem feito, que por sua vez nos traz ou induz-nos à sensação de felicidade, tão logo cheguemos ao final daquilo que nos propusemos realizar. O mestre Aristóteles discorre em sua Ética sobre a Felicidade: “é o sentimento que reside no fazer bem feito o nosso trabalho” – ou seja, para o fim, àquilo que nos propomos a realizar baseados na escolha certa, pensada, no exame racional dos meios que utilizaremos para chegar ao fim – bom, útil e belo. O uso da razão pressupõe um bem estar ulterior, uma satisfação (mesmo física, como estar bel alimentado) a priori, porque nela identificamos o completo das possibilidades e assim nos sentimos seguros e compelidos a agir sem receio de errar. Contudo, ainda podemos errar, só que desta feita mais pela intervenção do acaso, ou seja, da fortuna, no dizer Maquiavélico, daquilo que não podemos evitar por estar além de nossas possibilidades pessoais e por tratarem-se das ações da Natureza (forças psicofísicas – Aristóteles e Platão falam daMetafísica) que não nos compete superar, ainda que possam passar pela nossa compreensão em parte. Isto nos exime do sentimento de culpa porque fugiu de nosso poder, está além de nossas forças e das nossas possibilidades naturais. E a culpa é a troça negativa que se apodera da razão, o que nos faz propender à autocomiseração, confere excessivo valor à perda e às suas consequências, consumindo parte importante de nossas vidas, anulando temporariamente, às vezes, a nossa capacidade de reexaminar a situação e de resolvê-la.
‘Sei que vai chover e que será uma tempestade, e que dela advirão raios e relâmpagos, mas preciso resolver um determinado problema em um lugar afastado até o fim do dia. Determinado, sigo meu caminho e vou em direção ao local com a segurança de que poderei resolver a situação tão logo lá chegue. No meio do caminho uma ponte caiu pela ação das fortes correntezas do rio que está cheio e transbordou, não posso atravessá-lo. Esperar as águas abaixarem não resolve o meu problema, ainda há a ponte destruída. Dar a volta por outro caminho é impensável – a demora consumiria grande parte do tempo que disponho e me faria perder a oportunidade de resolver o problema a tempo.’
‘A pressa me diz: atravesse a correnteza. Neste momento devo analisar friamente todas as minhas condições de superar a correnteza. Sou forte, jovem, capaz e tenho no máximo 50% de chances de conseguir. O outro lado premente da questão é: o problema que tenho de resolver é mais importante do que 50% de minha vida? Ele que espere. Volto para casa e mando uma mensagem dizendo a verdade. Impedimento de ordem maior. Amanhã, ou quando a ponte estiver em condições, irei’. ‘No mundo atual o problema que me impede de resolver a questão pode ser queda de energia elétrica seguida de fim da bateria do meu aparelho de comunicações celular ou outras considerações de mesmo peso e valor. ‘
‘A prudência me fez pensar no valor maior: minha vida. Sem ela não há como resolver nada!’ Mas, no mundo moderno, as necessidades criadas pela inventividade acrítica e cruel do sistema do consumo, e das respostas rápidas, aceleradas pela tal da concorrência, que no final só visa dar lucro ao detentor da cornucópia de desejos infantis que nos acomete reforçados pela propaganda, vivemos correndo, com pressa, acelerados pela ignorância de chegar a lugar algum, porque lá só existe mais pressa, e não há prêmios, apenas dependência, só castigos despertados pelos desejos que tão logo se consumam e se realizem se transformam em outro desejo maior e mais forte, a nos mover novamente em direção a lugar algum, ou talvez a outro ponto mais elaborado do desejo. É importante ver as traduções e as diferenças apontadas entre desejo e vontade (também discutidas primordialmente por Aristóteles, bem como no avanço histórico-temporal destas reinterpretações e suas correlações adaptadas às linguagens da contemporaneidade por estudiosos e psicanalistas como Freud, Jung, Wittgenstein e Lacan), dentro da lógica conceitual do mundo da materialidade, e dos bens produzidos pela indústria no complexo capitalista. A discussão ganha vulto e dimensões no discurso de outro mestre: Rene Guenòn em seu fenomenal trabalho de análise dos contornos psicossociais no pós-segunda guerra mundial, e as consequências nefastas produzidas na Europa pela corrida desenfreada que teve de se implementar, e pela reprogramação forçada da reconstrução da vida em o Sinal dos tempos e o reino da Quantidade.
O esforço racional é feito sempre pelos outros mecanismos da máquina de mover o mundo que introduzirão nas pessoas, de modo elegante e frio, levando-as a buscar trocar uma satisfação imediata que se esvai tão logo em seguida por um valor material e financeiro que sustenta um status (o símbolo do poder não é o poder, que é imaterial, sentimento, e não está em mim, mas nos outros que o representam, e é nisso que reside o engodo), ao mesmo tempo em que reforça na entidade humana desatenta o sentimento da necessidade de acelerar, de aumentar a velocidade de seus atos, e, repercutindo a ordem, impensadamente, e por contaminação, psicosmose, ou seja lá qual for o nome que se dá a esta corrente pegajosa, lá se vão novamente para lugar algum, movidos pelo desejo implantado pela propaganda, atrás da consumação de um desejo que no máximo consequenciará o desejo do dono da cornucópia, este sim orientado pela necessidade de ser maior, melhor, mais forte e deter mais poder que os outros. No modo crítico de ler e dentro de uma perspectiva marxista dialética da história que nos dá parte da compreensão dos fenômenos e assevera ser a economia o motor e sustento de grande parte das ações humanas, estes personagens gerente da cornucópia são os donos dos meios de produção, hoje bens de consumo. Na perspectiva liberal são os empresários que geram a riqueza do mundo, e consequentemente, na dialética que rege ambos os conceitos, a sua miséria.
Não é à toa que muitos adoecem, engordam, sofrem de insônia, e, contratempo máximo da inversão, são obrigados a parar, experimentando a infelicidade e tornado-se vítima da indústria da dor que vive de propaganda, de vender fórmulas e soluções em gotas ou comprimidos, e, às vezes, de intervenções mais drásticas no corpo-máquina já descontrolado que tende a gerar corpos descontrolados por aproximação e práticas num círculo vicioso, bem ao sabor dos (des)controladores da cornucópia.
Para melhor compreensão do que se propõe neste texto recomendo leituras basilares:
Ética de Aristóteles – A metrética (medida) que usa o estagirita (Aristóteles era chamado assim por ter nascido em Estagira) procurava o caminho do meio entre vícios e virtudes, a fim de equilibrar a conduta do homem com o seu desenvolvimento material e espiritual. Assim, entendido que a especificidade do homem é a de ser um animal racional, a felicidade só poderia se relacionar com o total desenvolvimento dessa capacidade. A felicidade é o estado de espírito a que aspira o homem, e para isso é necessário tanto bens materiais como espirituais. Os materiais se alcançam com o trabalho, a realização da ideia em algo palpável pelo que se troca, hoje em dia por dinheiro – assim o investimento da quantidade de tempo disponibilizado para trazer do mundo ideal para a realidade o pensamento, fruto da razão, da lógica, da inteligência, da criatividade, ferramentas mentais humanas. A espiritualidade é como um reflexo do bem que se alcança pessoalmente e coletivamente e como resultado do trabalho bem feito.
Mas, esta é uma leitura contida e individualizada; nunca devemos nos esquecer de que nas sociedades atuais o homem é consequência também de suas relações co-construtivas. Com o advento da sociedades industriais os homens passaram a depender muito mais uns dos outros, imitando – um tipo de mimetismo psicossocial – as cadeias produtivas das empresas onde trabalhavam. E num só golpe perderam-se os sentidos de trabalho como ferramenta de felicidade, bem como promoveu-se a desconexão com o espiritual. Além disto, outro efeito notado foi o surgimento de grupos sociais com problemas específicos e relacionados aos seus nichos de trabalho que acabaram se juntando em torno destes problemas e configuraram por interesses as diversas associações de classe, o que nos remete às explicações dialético-materialistas do pensamento marxista.
O Capital – Karl Marx – diversos estudos compilados em volumes que tratam de assuntos que vão desde a Economia Política às críticas aos modelos econômicos anteriores às análises, bem como os modos de produção, acumulação, distribuição, força de trabalho, abstinência, mais valia, capital mundial, críticas aos modos industriais vigentes e perscrutações filosóficas e aprofundadas sobre a relação trabalho x capital.
A Arte da Prudência – de Baltazar Gracian, um estudioso jesuíta espanhol que em 300 aforismos, lança luzes sobre as relações humanas, tomando como princípio a instabilidade do ser humano no campo emocional (desvio natural explorado e muito bem aproveitado pela propaganda\publicidade atual, de olhos sempre nas fraquezas, mais do que nas virtudes humanas). Este livro funciona como um manual de estratégia para bem viver. Mas não usa sentimentalismos ou utopias. Seu modo de pensar se baseia na realidade dos fatos. Para Gracian, o ser humano é imprevisível e age em todo o tempo buscando seus próprios interesses (outro apelo muito bem explorado pela publicidade atual que aposta no individualismo, bem mais do que na valorização da individualidade). Ser precavido, portanto, ante as circunstâncias para obter o equilíbrio é a base de seus ensinamentos.
Punção e desejo – Sigmund Freud – a base do pensamento de Freud está na paixão desenvolvida pelo Amor (Eros), filho de Júpiter e Afrodite por Psique, filha de Vênus (Afrodite). O mito se repete na história das tragédias greco-romanas como na guerra de Troia, em que Helena representa Psique, e o príncipe troiano que a raptou Eros. Resultado de uma disputa em que o príncipe pastor escolheu a beleza em vez da sabedoria, o rapto de Helena, a mulher mais bela do mundo cumpriu o destino de Páris, quer teria sido apontado por uma maldição no seu nascimento: ele, pelas suas escolhas, poria fogo em Troia e a destruiria, como resultado da guerra e c omo vemos no mito de Troia\Aquiles.
O mito é uma alegoria do encontro da Alma com o Amor. Em versões mais antigas Eros é uma divindade primordial saída do Caos e não é filho de ninguém. Páris aparece em outro mito, no qual ele deve escolher a mais bela entre três deusas, desencadeando a guerra de Troia. Mesmo tendo sido corrompido por Vênus e tendo Páris a feito vencedora, a formosura de Psique a tornou mais venerada do que Vênus….
Assim, na leitura freudiana, ‘o desejo é um desdobramento da busca pelo prazer (importante aqui notar as diferenças entre Epicurismo e Hedonismo), e visa, como meio de realizar tal descarga, a experiência da identidade entre a percepção atual, o sentir, as emoções e os estímulos que compuseram a vivência de satisfação primária – desde o contato intrauterino, às fases de satisfação oral mamando nas tetas da mãe, que se substituem. Nas palavras de Freud : “a uma corrente…que arranca (o aparato psíquico) do desprazer e aponta ao prazer, chamamos desejo” . Nesse sentido, a grande força motriz da ação de um sujeito, em Freud, é a busca de retorno a esse momento de satisfação plena, que nunca mais será revivido integralmente, como também é essa busca do substrato para toda a construção do aparelho psíquico, além da fonte de sua energia, à medida que “somente um desejo pode impulsionar a trabalhar nosso aparato anímico” Ainda segundo Freud o desejo pertence mais propriamente à esfera do afeto (por sua qualidade de “moção” e “corrente”), enquanto o “traço mnêmico da vivência de satisfação”, investido pelo desejo, pertenceria ao campo do representacional. O desenvolvimento do Eu consiste em um processo de distanciamento do narcisismo primário e produz um intenso anseio de recuperá-lo. Esse distanciamento ocorre por meio de um deslocamento da libido em direção a um ideal-de-Eu que foi imposto a partir de fora, e a satisfação é obtida agora pela realização desse ideal (a luta interior entre a cultura e a natureza básica do zoon – o animal, o ser dotado de anima – alma) contribui para a construção de um Eu social zoon politkòs – e quanto maior esta luta mais um lado tende a se impor e a superar o outro.’
Símbolos e Poder – Karl Gustav Jung – “Wotan” havia tomado posse da alma do povo alemão. E quem é Wotan? O deus representativo das forças naturais em desequilíbrio, “um deus das tempestades e da efervescência, desencadeia paixões e apetites combativos”. Quem, deus ou demônio, representa esta vontade\desejo de ter, dominar, acima dos outros? Como satisfazer tais desejos – interessante rever o mito grego em que as deusas entram em disputa durante uma cerimônia de casamento em que Éris, deusa da Discórdia e única que não havia sido convidada, compareceu à festa com uma maçã de ouro com a inscrição “à mais bela”, oferecendo-a àquela que fosse escolhida a mais bela das deusas. Hera, Atena e Afrodite disputaram a posse do pomo. Zeus, para não entrar em conflito com elas, recusou-se a ser o juiz, e por conselho dos outros deuses, escolheu Páris, por ele ser honesto. Assim, esperando ser escolhida, cada uma das deusas fez promessas ao jovem príncipe. Hera, rainha dos deuses, prometeu a Páris que se fosse escolhida, ele seria o rei mais poderoso do mundo. Atena, deusa da sabedoria e da batalha, prometeu que se ganhasse, ele teria muita sabedoria e sempre obteria vitória nas batalhas. Já Afrodite, deusa da beleza e da sensualidade, prometeu que ele teria o amor e se casaria com a mulher, que naquela época, era a mais bela do mundo: Helena, filha de Zeus com a rainha Leda. Páris acabou escolhendo Afrodite.
Os próprios deuses sofrem dos males que representam\exemplificam em suas história e mitos; então a danação, a dor e a confusão antecede aos homens e aos mortais, e isso torna-se claro que percebemos que os deuses desciam à Terra para se misturarem com os humanos e com eles vivenciar experiências que a deidade impedia – escolher uma mortal para reproduzir, por exemplo, um semi deus que o seria inimputavelmente, mas reproduziria desta feita num só corpo\alma as dores e contradições dos dois princípios: mortalidade e imortalidade – Eros filho da sujeira e da miséria e Tânatos filho da Noite e do Caos. Combinação muitíssimo curiosa, não?
Lacan. O Eu como instância de desconhecimento, de ilusão, de alienação, sede do narcisismo. É o momento do Estádio do Espelho. O Eu é situado no registro do Imaginário, juntamente com fenômenos como amor e ódio. É o lugar das identificações e das relações duais. Distingue-se do Sujeito do Inconsciente, instância simbólica. Lacan reafirma, então, a divisão do sujeito, pois o Inconsciente seria autônomo com relação ao Eu. E é no registro do Inconsciente que deveríamos situar a ação da psicanálise para descobrir ou botar luz na necessidade da transformação. Para tanto, faz-se necessário desligar algumas luzes artificiais e buscar em si algo maior e melhor – “Conhece-te a ti mesmo!” Condição sem a qual não se reconhece nem se evoca o dharma presente em todos os corações..