A primeira refeição de Ano Novo
O dia correu normal. Todos os preparativos e rituais para a chegada do novo ano foram cumpridos. Cheiro bom de comida. Incenso da prosperidade. Branco. Claro, a roupa branca também não podia faltar. Tudo como manda a tradição, mas, mais ainda como gosta o seu coração.
O brinde! Ah... o brinde! Cheio de intenção, de gratidão e de celebração. No levantar da taça até o momento do primeiro gole, o ano inteiro que ficou pra trás passa como um flash em sua mente.
O que mais ela poderia querer? O que mais ela poderia esperar? Um momento eternizado que caminhava pra uma linda e doce noite de sono... Mas... esse mas foi o intruso. Esse mas, que muda o rumo de qualquer história... Mas, o que era pra amanhecer quente e lindo como o dia que surgia na janela, se fez escuro e frio como amanheceu seu coração...
Por quê? Ela não queria se sentir assim. Ela não é ingrata. Ela dormiu feliz!... Quem sabe lidar com o mas das emoções?... quem sabe onde, quando e quais delas resolvem chegar, sem aviso, tipo presente (in)desejado de Natal... Mas poxa, é Ano Novo! Certo. Sem escolha. Afinal, como recusar algo que ela mesma se deu?
Ressaca moral pelo que não acertou no ano que se foi. Detox emocional pelo que fez e recebeu. Uma corrente de sentimentos e pensamentos que a fizeram começar esse 2020 questionadora, indignada e porque não, até com certa raiva... Raiva dela mesma, por ainda cometer os mesmos e os novos erros. Indignada, por se perceber não aprendendo as lições que consegue enumerar nos dedos. Questionadora da vida e das suas atitudes. Do quanto é responsável pela forma com que escolhe vivenciar o que lhe machuca...
Tudo posto, assim como a linda mesa que ela arrumara pra ceia na noite anterior, era hora de encarar o banquete...
Ela sabe que não pode comer só do que gosta. O que precisa também faz parte. Mas, o que não gosta e não precisa ela separa num canto do prato sem culpa nem pesar pela “falta de educação”. Afinal, na mistura pronta de emoções que se serviu, o prato é dela e a ela que se deve a decisão do que ingere e do que recusa dentro desse prato que ela encara assim, logo na primeira refeição do novo e longo ano.
E assim foi. Ela olhou pra cada ingrediente do seu prato, refletiu, e, sem tempero adicional, colocou pra dentro, bem pensado e mastigado o que era seu de direito e de dever. Descartou com elegância (nenhuma) o que não lhe servia nem era seu, nesse prato nada fácil de admirar, quanto mais saborear.
Aceitou o que veio. Era naquela hora. Naquele momento. Afinal, recusar não é de boa educação. Nem era uma opção. Ela sabe que é jogar fora tudo do prato e, como mágica, ele surge numa próxima refeição.
Assim, após separar e garfar cada emoção até o fim, naquele momento que era só dela mesmo que não quisesse assim, foi recuperando a calma da mente e do coração. Bebeu da água do auto perdão, que ajudou a encarar o prato e respirou firme e pronta novamente para olhar pela janela e encarar o lindo dia que já conseguiu começar a ver lá fora.
Agora, ela quer saborear com calma e vontade, o prato doce de sobremesa, de gentileza e compaixão que ela mesma preparou pra si, com carinho e acolhimento. Ingredientes escolhidos à dedo porque ela sabe que pode e merece. Ela sabe que precisa. Afinal, serão 365 cardápios que virão pra sua mesa nesse ano que ela não vai preparar, mas ela sabe que a água e a sobremesa, ela sempre poderá providenciar pra completar com amor e perdão cada vez que se sentar para sua refeição.