Primeiras mudanças para a prática regenerativa
Alinhar o desenvolvimento social com a inteligência dos sistemas vivos passa necessariamente por uma mudança no pensamento, em como nos vemos e em como trabalhamos
Cultivar uma nova mentalidade
Os principais problemas da humanidade possuem origem no pensamento em si. Ainda está vigente uma visão de mundo desatualizada, industrialista, dominadora e patriarcal. Reduzimos a complexidade do mundo em linhas retas e em processos de causa e efeito. Transformamos tudo o que se move e cresce em máquinas newtonianas. Se a complexidade e incerteza se apresentam ficamos paralisados e tratamos logo de identificar qual peça dessa máquina iremos reparar, trocar ou remover.
Lidamos o tempo todo com sistemas vivos. Cidades, bairros, comunidades e organizações se assemelham mais com um organismo do que com uma máquina. Buscamos, então, uma abordagem apropriada para lidar com esses sistemas vivos, dinâmicos e complexos: o pensamento dos sistemas vivos.
Podemos começar trocando as metáforas que descrevem o mundo. Assim, não mais vemos o planeta como uma máquina que precisa de reparos e passamos, então, a entendê-lo como uma rede de sistemas vivos interdependentes e em constante transformação em direção a maiores ordens de organização e complexidade. Deixamos de focar nos objetos e passamos a observar as relações. Deixamos de medir e passamos a mapear os processos da vida.
O pensamento sistêmico é a ferramenta que utilizamos para entender contexto e interdependência. A visão sistêmica da vida capta a inteligência dos sistemas vivos e a transforma em práticas coerentes com o funcionamento dos sistemas naturais. Guiados por princípios universais da vida, como desenvolvimento e potencial, alinhamos o nosso pensamento e prática com a sabedoria dos sistemas vivos. Esta nova mentalidade nos permite observar o funcionamento dos ecossistemas, suspender nossos conceitos e condicionamentos e honrar os bilhões de anos de evolução da vida.
Ver os humanos como sendo natureza
Em algum momento decidimos que nós, seres humanos, somos diferentes daquilo que nos envolve, a natureza. O mote cartesiano, conhecer para conquistar, marcou uma forma de pensamento em que tudo e todos estão a serviço dos seres humanos. Esta separação, onde temos natureza de um lado e cultura de outro, é notadamente uma das principais causas da crise planetária. Estamos em guerra com todos — com o planeta, com a nossa casa e com nós mesmos.
A nova mentalidade necessária para se trabalhar de forma regenerativa passa pela superação da separação entre natureza e cultura. Fazemos parte de sistemas vivos dinâmicos, complexos, interdependentes e evolucionários. Devemos fazer as pazes com a natureza.
Passamos, então, a desenhar sistemas socioecológicos como sendo, nós mesmos, a própria natureza. Se somos natureza, somos múltiplos. Passamos a nos enxergar nos menores animais e nas maiores montanhas. Assim, a cautela, o princípio da precaução, passa a ser fundamental pois nós, em sã consciência, não queremos ferir a nós mesmos.
Assumir um novo papel profissional
Praticantes regenerativos devem assumir o papel de criar e manter as condições para a saúde dos sistemas naturais. Restringir as suas atividades em ações pontuais ligadas ao seu treinamento formal não é suficiente. Os novos profissionais precisam reconhecer as interdependências de suas ações e estarem aptos a enriquecer a visão da equipe com a sua perspectiva particular, contextualizada e bem informada. O trabalho regenerativo é colaborativo, transdisciplinar e integra diversos elementos associados ao projeto.
Enquanto seres participantes da teia da vida precisamos estar atentos aos fluxos materiais e imateriais presentes. Somos criadores conscientes dos relacionamentos a nossa volta e responsáveis diretos do resultado dessa interação. O nosso objetivo, então, é o da participação apropriada. Para tanto, o nosso trabalho deve estar em constante evolução em todas as três linhas de trabalho do desenvolvimento regenerativo, ou seja, nas esferas do eu, da comunidade e do lugar.
Tomar o lugar como ponto de partida
Nosso condicionamento em trabalhar de forma reducionista e imediatista dificulta o trabalho holístico, ou seja, com o todo socioecológico em que estamos inseridos. Ao replicar soluções padronizadas atropelamos a essência cultural e ecológica do território. O resultado são lugares e projetos sem identidade e vitalidade.
A abordagem regenerativa do desenvolvimento toma o lugar como entidade central e ponto de partida. Desta forma somos capazes de identificar o padrão de aninhamento que o sistema se organiza e podemos identificar o todo mais próximo ao projeto, o todo mais amplo e seus relacionamentos. Esse passo é crucial para se trabalhar de forma holística.
Só é possível estabelecer uma relação de coevolução dos humanos com os sistemas naturais a partir de um lugar específico utilizando abordagens precisamente ajustadas para as especificidades deste lugar. Essas características únicas do lugar lhe conferem uma essência, uma singularidade e a partir desta característica é possível identificar o potencial regenerativo do projeto.
Trabalhar de forma desenvolvimental
O desenvolvimento regenerativo é uma abordagem que constrói capacidades e processos, e não coisas. Isso significa que a infra-estrutura de um projeto deve funcionar como catalisadora de capacidades evolutivas, ou seja, deve facilitar a evolução dos sistemas locais rumo a maiores ordens de organização e complexidade.
Trabalhar de forma desenvolvimental implica um novo olhar para a escala de tempo. Isso é, projetamos processos evolutivos para acontecer ao longo dos anos. Implica, também, reconhecer que o desenvolvimento do todo passa necessariamente pelo desenvolvimento das capacidades de cada pessoa envolvida, criando, assim, um ecossistema que evolui junto, onde o sucesso de um contribui para o sucesso do outro e de todos.
Se a equipe teve sucesso em criar uma cultura de coevolução dentro e no entorno do projeto, e não apenas um produto físico, os efeitos podem ser vistos antes mesmo da execução da atividade central. Relacionamentos pessoais próximos, cultura de cooperação, aprendizado coletivo, maturidade na resolução de conflitos e celebração são características de uma comunidade em regeneração.
O trabalho do praticante regenerativo passa, então, por estabelecer uma cultura desenvolvimental que deve prosperar e evoluir após a saída da equipe de projetos. Se os atores envolvidos se sentem pertencentes àquela comunidade e continuam a trabalhar pela evolução do todo rumo ao potencial regenerativo do lugar, pode-se dizer que o projeto obteve sucesso.
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