A PROPÓSITO DA SAÚDE ... "FIRST, DO NO HARM"*
Quando falamos sobre a saúde, não a nossa, mas aquela que pretendemos que uma determinada população tenha, podemos desdobrar o conceito em várias componentes sendo uma delas a prestação de cuidados médicos no âmbito da medicina curativa. Todos sabemos que a saúde das pessoas ou das comunidades não se resume apenas à medicina curativa que é aquela que visa a mais eficaz e eficiente resolução dum problema de saúde estabelecido.
Os estados, responsáveis pela saúde das suas populações, através do seu poder executivo, têm a obrigação de promover a saúde das mesmas, basicamente de duas formas: prevenindo o surgimento de doenças (medicina preventiva) e tratando-as depois de estas surgirem (medicina curativa).
Do ponto de vista individual, ou seja, para cada um de nós, a medicina curativa (em contraponto à preventiva) é quase sempre aquela que mais nos preocupa, sobretudo quando a doença nos bate à porta. Quando estamos saudáveis (ou pensamos que estamos) existe uma falsa sensação de que a doença nunca nos irá "atacar", que iremos morrer "velhinhos" e cheios de saúde. Daí ser aceitável que as nossas maiores preocupações como indivíduos sejam as questões ligadas à medicina curativa.
Não pretendo falar sobre a dicotomia entre prevenir e tratar doenças até porque ambas as opções são de extrema importância quer no plano individual quer no plano colectivo e interligam-se.
Gostaria apenas de abordar algumas questões relativas ao que está subjacente ao âmbito da medicina curativa estimulado por reais e recentes constatações que, apesar de poderem ser episódicas e aleatórias, não deixam de me obrigar à reflexão como médico e como cidadão.
Para curarmos uma determinada doença, quer de forma parcial ou completa, quer de forma temporária ou definitiva, através do recurso a procedimentos médicos (uso de medicamentos) ou cirúrgicos (realização de cirurgias), ou a ambos, é fundamental que se proceda inicialmente a um diagnóstico o mais correcto possível. Nenhum médico pode aspirar a tratar de forma efectiva e eficiente se não conseguir saber com o maior grau possível de certeza o enquadramento nosológico de determinado paciente. Isto nem sempre é fácil, por vezes temos de recorrer a um trabalho de equipa multidisciplinar (o paradigma dominante da medicina moderna), mas o actual estado da arte médica dispõe de um extenso manancial de conhecimento teórico e habilidades práticas, de evidência clínica e de meios de diagnóstico que vão desde os mais simples até àqueles que fazem uso de tecnologias altamente complexas, que deve ser dominado de forma consistente e abrangente, para permitir, na maioria das doenças comuns (não confundir com doenças pouco graves), fazer-se um diagnóstico pré-terapêutico correcto.
O valor desse diagnóstico é tanto mais importante quanto mais correcto for mas não só. O tempo que se demora no diagnóstico e a escolha dos procedimentos utilizados (alguns com carácter invasivo) são cruciais para o sucesso terapêutico que fará a diferença, extremamente importante, entre curar (ficar sem doença) ou paliar (atenuar ou aliviar a doença).
Muito embora a medicina moderna esteja inundada de meios técnicos e tecnológicos e ao arrepio de algumas "mentes demasiadamente brilhantes" que pressagiam um futuro da medicina sem o "médico humano", continua a ser essencial para não dizer imprescindível, para o sucesso da prática médica, o elemento humano, o médico “de carne e osso”.
Podemos planear e construir excelentes espaços físicos destinados a unidades de saúde com as mais avançadas técnicas de engenharia e arquitectura, dotá-las das condições essenciais para o seu funcionamento como água, electricidade e sistemas de saneamento, equipá-los com os mais modernos e dispendiosos equipamentos médicos, contratar os mais eficientes gestores e os melhores serviços acessórios (hotelaria, transportes, sistemas de informação, etc...), mas se não tivermos a capacidade de construir uma equipa médica (e de enfermeiros e técnicos também) com a indispensável e sólida competência, será impossível cumprir com o objectivo de servir os seus utentes de acordo com as suas expectativas e necessidades, principalmente a restituição da saúde que temporariamente lhes faltou.
De que adianta ter unidades de saúde que não diagnosticam correctamente e de forma atempada, não tratam porque não diagnosticam, e por fim não conseguem seguir ou controlar a doença ou a ausência dela porque os doentes foram obrigados a procurarem outras instituições que o façam?
Existe um princípio em medicina, por vezes esquecido ou não lembrado, que diz "first, do no harm" ("primum non nocere" em latim) e que significa que “antes de mais, não fazer nada que prejudique". Este princípio, por mais absurdo que pareça e levado ao extremo, poderá colocar em causa a utilidade, a pertinência e de certa forma a legitimidade da existência de determinadas unidades de saúde que na sua ânsia de auto-legitimação causam mais danos que benefícios à saúde individual e colectiva.
Entre fazer mal ou não fazer, por vezes a opção mais correcta será a segunda e não há que ter vergonha em assumi-lo.
Reconhecer o que não se sabe é uma virtude.
“First, do no harm”.
*texto da minha autoria escrito e publicado nas redes sociasi em 2017 mas que se mantém atual e pertinente para uma reflexão sobre os sistemas de saúde a nível pessoal e colectivo
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