Quando as emendas são piores do que o soneto

Quando as emendas são piores do que o soneto

Gostaria de começar a escrever sobre o último pilar do PL 3819, a inexistente inconstitucionalidade da Lei n. 12.996/2014. Como esse debate será travado no Supremo Tribunal Federal no próximo dia 21 de outubro, optei por adiar um pouco essa discussão e antecipar outro texto já programado, sobre as emendas apresentadas ao mencionado projeto de lei.

Já escrevi sobre o PL 3819 e o que a proposição legislativa representa: um enorme retrocesso ao transporte rodoviário interestadual de passageiros, TRIP.   

Segundo o parecer apresentado pelo relator do projeto de lei, a grande preocupação do autor da proposição seria “o impacto direto na disponibilidade dos serviços e no direito de locomoção da população, uma vez que no regime de autorização apenas as rotas economicamente vantajosas para as empresas serão ofertadas à população”.

Seria uma preocupação justa não fosse o PL 3819 uma resposta diametralmente oposta ao fim que se busca alcançar. Explico. Fosse vigente o regime de permissões o número de ligações e cidades atendidas pelo TRIP seria menor do que é atualmente – mesmo desconsiderando a expansão dos mercados em curso –, e os patamares tarifários seriam razoavelmente superiores aos que são praticados hoje, principalmente nas ligações em que existe competição na prestação do serviço.

A retórica de que no regime autorizativo somente as linhas mais atrativas seriam oferecidas aos usuários do sistema não resiste ao exame superficial dos números do setor desde que houve a abertura do TRIP à concorrência.

Analisando as solicitações de outorgas de mercados em exame pela autoridade reguladora, vê-se que a expansão da rede de atendimento – ampliação do número de municípios atendidos pelo setor de TRIP – se concentra em localidades com menos de 50 mil habitantes. De cada 100 novos municípios a serem agregados ao sistema TRIP, cerca de 86 são de pequeno e médio porte.

Essa perspectiva está retratada no mapa abaixo, que mostra mais de 400 localidades que podem ser incorporadas brevemente à rede de atendimento do setor.

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Diferentemente do afirmado no parecer do PL 3819, no curto prazo o número de municípios atendidos pelo sistema TRIP no regime autorizativo pode aumentar em até 20%, a partir dos processos em análise na autoridade reguladora.  

Mais do que isso, 7 em cada 10 ligações outorgadas após o início do processo de abertura do mercado à concorrência passaram a conectar municípios que jamais foram interligados pelo sistema TRIP em cerca de 50 anos de regulação setorial.

Outro aspecto que não aparece retratado na proposição legislativa é o que o direito de locomoção da população vai ficar mais caro. Os usuários do serviço, sabidamente de baixa renda, pagarão mais para se locomover com a aprovação do PL 3819. E não se trata de achismo, é matemática, pura e simplesmente.

Não parece razoável que o debate legislativo sobre o PL avance sem que se abra espaço para discussão desse e de outros aspectos. A matéria não teve nenhuma audiência pública, não passou por nenhuma comissão e vem avançando sem o aprofundamento necessário ante os efeitos que ela trará sobre o setor e os usuários do TRIP.

Projetos de igual complexidade, como o marco legal das ferrovias, PLS 261/2018, ou a nova lei de concessões, vêm sendo objeto de profundo debate, tanto no Senado Federal, como na Câmara dos Deputados, em discussões conduzidas pelo Senador Jean Paul Prates e pelo Deputado Arnaldo Jardim.

Não vislumbro razão para que o PL 3819 tenha tramitação diversa desses outros projetos, principalmente quando se examina os efeitos deletérios que sua aprovação ocasionará sobre os usuários do setor, incluindo os beneficiários de gratuidades e descontos tarifários.

Todo esse indesejável cenário se agrava quando se examinam as emendas apresentadas ao referido projeto de lei, que conseguem comprometer uma proposição legislativa que já não é positiva.

De forma a comprovar que não se trata de mera opinião, passarei a analisar as emendas ao PL 3819.

Inicio pela 7ª emenda, possivelmente a mais carente de sentido entre todas, mas que resume bem o viés do projeto de lei.

De forma a ser fiel aos argumentos, reproduzo o inteiro teor do texto do parecer relativamente a essa emenda, com alguns destaques ao trecho original.

"A sétima emenda inclui artigo ao PL para suspender as autorizações concedidas após 30 de outubro de 2019. As autorizações em vigor até esta data não devem ser interrompidas, dada a sua relevância, pois são atividades imprescindíveis à coletividade e garantidoras do direito de locomoção dos usuários. A Deliberação nº 955, de 2019, da ANTT, que originou a concessão de autorizações sem qualquer critério técnico, operacional ou financeiro, além de contestada em diversas ações judiciais, elas estão desequilibrando o sistema."

É um parágrafo pequeno, mas que contém uma série de imprecisões. A mais equivocada delas parte da premissa – falsa – de que as outorgas deferidas pela agência reguladora estariam ocorrendo sem qualquer critério técnico ou operacional. Isso é obviamente inverídico.

Vamos aos números[1].

Desde a edição da Deliberação n. 955/2019 a entidade reguladora já analisou – e decidiu – 1.260 pedidos de outorga de mercados. Desse total, 1.161 pedidos foram indeferidos ou arquivados, ao passo que apenas 99 requerimentos de mercados foram aprovados.  

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Como sustentar que as autorizações outorgadas pela agência reguladora não teriam qualquer critério técnico se em grandes números de cada 100 pedidos de mercados, somente 8 foram aprovados e 92 foram indeferidos/arquivados?

Antes de explicar como se dá esse processo que aprova apenas 8% dos pedidos de mercados protocolados na agência, e entender o porquê de um percentual tão baixo, vamos a mais números.

Quem são as empresas que obtiveram mais pedidos de mercados deferidos pela autoridade reguladora (em número de requerimentos)?

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A Nordeste Transportes foi a empresa que até então teve mais pedidos deferidos, 12 ao todo. As quatro empresas que tiveram mais requerimentos de mercado aprovados já atuam no setor de TRIP. A figura abaixo traz como essas empresas operavam ao final de 2018.

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Parece natural que os atuais operadores, em sua maioria com décadas de atuação no setor, e conhecedores, pois, das regras do marco regulatório, não tenham dificuldade de atender os requisitos técnicos e operacionais para ampliar sua participação no setor de TRIP.

Outra informação relevante diz respeito à relação entre requerimentos e número de ligações outorgadas a empresas novas (alpha) e incumbentes (millennials).

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Em número de pedidos, apenas 10% dos requerimentos de mercado deferidos ocorreu para novos entrantes. Quando se observa esse mesmo percentual relativamente ao número de mercados[2] a relação é ainda menor, apenas 7% dos mercados outorgados se deu para empresas que estão ingressando no setor de TRIP.

Diferentemente do que vem sendo alardeado, as empresas que operam no setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros vêm sendo o principal vetor do aumento da concorrência no mercado.

Até então, embora importante, os novos entrantes ainda têm uma participação restrita nesse processo.

Esses números por si só mostram que existe espaço para ampliação da competição nesse setor, que se encontra longe do equilíbrio de mercado.

Isso fica evidente quando se examina as empresas que tiveram mais mercados outorgados desde a edição da Deliberação n. 955/2019.

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Desde o início da abertura do setor à concorrência a Viação Ouro e Prata, que já era uma das maiores empresas de TRIP, praticamente dobrou sua atuação no mercado em número de ligações.

Em quantidade de mercados outorgados, a Viação Ouro e Prata passou a ser a empresa com a maior atuação no setor de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, superando a Empresa Gontijo de Transportes.

Como afirmar que haveria equilíbrio no setor antes do início da vigência do ambiente de livre e aberta competição no TRIP, se já na largada da abertura de mercado uma das maiores empresas do setor praticamente dobra o número de ligações em que opera?

E isso não é um movimento isolado, boa parte das grandes empresas do setor vêm buscando ampliar sua atuação no mercado de TRIP. Nem todas, contudo, cumprem os requisitos técnicos e operacionais para tanto.

Passemos agora ao exame de quem vem tendo mais dificuldade ou não está conseguindo ingressar ou ampliar sua participação no setor de TRIP, quadro a seguir.

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Se considerarmos que a Viação Itapemirim e a Viação Caiçara pertencem ao Grupo Itapemirim, tem-se que esse grupo, a Rotas de Viação do Triângulo, a Solimões Transportes (pertencente ao Grupo Eucatur) e a EMTRAM foram as empresas com mais pedidos de mercados indeferidos desde a edição da Deliberação n. 955/2019.

A integralidade desses indeferimentos se deu em razão da inobservância do nível adequado do Monitriip, sistema de monitoramento da prestação de serviço de TRIP.

A lógica dessa regra é a de que empresas que já atuam no setor e não enviam à entidade reguladora as informações essenciais ao monitoramento da prestação do serviço – como preços praticados, itinerários, pontos de parada e número de passageiros transportados, por exemplo – não poderiam ampliar sua atuação no mercado de TRIP.  

À título ilustrativo, o mapa abaixo indica como essas empresas operavam ao final de 2018, o que mostra que elas possuem uma rede de ligações mais abrangente do que daquelas empresas que lideram em número de pedidos de mercados deferidos.

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Isso é característico do regime autorizativo, empresas que atendem os requisitos terão seus pedidos deferidos, ao passo que empresas que no momento da solicitação de mercado não atendem aos critérios previstos em norma terão seus pedidos indeferidos.

A objetividade da análise, e a consequente impessoalidade da atuação da autoridade regulatória se evidencia quando se percebe que das 34 empresas que tiveram obtiveram outorgas autorizadas após a Deliberação n. 955/2019, 22 também tiveram pedidos indeferidos no mesmo período.

Como mostra abaixo, 65% das empresas que obtiveram sucesso em seus pleitos de outorga de mercados junto à agência reguladora, também tiveram pedidos indeferidos ou arquivados.

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A tabela a seguir apresenta a relação dessas 22 empresas. Sombreado em cinza aparecem as empresas que mais tiveram pedidos deferidos e mercados outorgados, o que comprova que as análises empreendidas pela agência seguem critérios técnicos e operacionais, todos plenamente conhecidos das empresas do setor.   

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Sobre a menção ao fato de que a Deliberação n. 955/2019 estaria sendo contestada em diversas ações judiciais, isso só evidencia dois aspectos: de um lado o receio de que parte das empresas do setor têm em se submeter a um ambiente de livre e aberta competição, e do outro a ausência de coerência na atuação regulatória dessas mesmas empresas, vez que boa parte delas ingressaram em juízo contra a decisão da agência reguladora que garantiu efetividade ao art. 43 da Lei n. 10.233/2001, ao mesmo tempo em que protocolaram pedidos de mercados com base na efetividade desse mesmo comando legal.

Na esfera judicial elas pediam imunidade concorrencial aos mercados em que atuam, ao mesmo momento em que administrativamente solicitavam autorização para ampliar sua presença no setor, muitas vezes atuando em ligações operadas por outras empresas.

Alguns mais rigorosos podem entender que se trata de litigância de má-fé. Mas talvez exista um ditado que resume bem essa estratégia processual: “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

Em mais de duas dezenas de ações judiciais, só existe uma decisão liminar contrária à efetividade da Deliberação n. 955/2019, e mesmo nessa ação, com efeito "inter partes", o Desembargador que apreciou o agravo da agência reconheceu a juridicidade da decisão da autoridade reguladora.

A solidez da decisão da agência não vem sendo reconhecida apenas em diversas instâncias do Judiciário, como também pelo interesse de as empresas ingressarem ou ampliarem sua atuação no setor de TRIP.

Desde a edição da Deliberação n. 955/2019 já foram protocolados mais de 600 novos pedidos de outorga de mercados, número significativamente superior ao que vinha sendo observado no setor previamente a esse ato administrativo.

Por fim, quanto à afirmação – incorreta – de que as outorgas deferidas após 30 de outubro de 2019 estariam desequilibrando o sistema, esse entendimento deriva do equivocado conceito de inviabilidade técnico-econômica, apresentado na 1ª emenda do parecer sobre o PL 3819.

Analisarei essa emenda em um texto específico, mas já posso adiantar que além de impreciso, o conceito apresentado carece de robustez matemática, bem como não encontra amparo em pressupostos de Direito Administrativo Econômico de setores regulados.  

Levada a cabo essa ideia, o parlamento estaria chancelando uma autêntica estrovenga regulatória, um novo 7x1 do lobby das empresas millennials do setor sobre os usuários do TRIP.

Sai o equilíbrio de Nash e retorna o equilíbrio do rei D. João III, que implementou o modelo de capitanias hereditárias no país, em um longínquo 1534.



[1] Contando decisões publicadas no Diário Oficial da União até o dia 25 de setembro de 2020.

[2] Ligação entre municípios de diferentes unidades da federação

Concordo plenamente com o seu texto!! Quando entre em debates produtivos, sempre comento que no Brasil opera-se um capitalismo maculado, o capitalismo de laços ou de compadrinhos (crony capitalism). Há um excelente livro do professor do Insper Sérgio Giovanetti Lazzarini que trata sobre esse tema, Capitalismo de laços. O mais impressionante é que descreve como as regras (instituições formais para North) são alteradas para manter essas relações.

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