Quarentena e trabalho

Quarentena e trabalho

Vamos deixar clara uma coisa: ninguém disse que não é para trabalhar. Home office, por sinal, é trabalho, e há aqueles que precisam continuar indo a suas empresas, a despeito de todo o esforço de isolamento social.

A quarentena é, porém, temporária, para evitar que haja um pico de infecções e sobrecarga no sistema de saúde. Apenas isso.

Será que uma empresa vai falir se aguardar pelo menos 2 semanas, para o País verificar se houve alguma resposta na redução de casos ou no achatamento da curva?

Será que não é possível esperar um pouco e ir avaliando e reavaliando sistematicamente os resultados para, então, discutir o afrouxamento da quarentena? Começa hoje, e o grande empresário já quer demitir amanhã?

O que é isso?

Ora, temos de admitir, como disse Angela Merkel, que a maioria das pessoas vai, sim, pegar a Covid-19. Merkel anunciou que 2/3 dos alemães, por exemplo, seriam infectados, e, para a esmagadora maioria deles, a Covid-19 será similar a uma gripe forte, da qual se recuperarão.

Então, por que há as medidas de contenção? É porque, para algumas pessoas, a doença será mais do que isso – o que inclui sobretudo os grupos vulneráveis, mas não só. Os jovens têm menos recorrências de complicação, e não ausência de complicação. Desviando-se do padrão, já tivemos uma chinesa de 103 anos que se curou normalmente e um homem jovem de 35, o médico que deu o primeiro alerta, que faleceu.

Aqui, inclusive, precisamos tomar cuidado com duas coisas: uma quarentena frouxa demais, ou ausência de quarentena, fará com que os casos mais graves na população de baixo risco aumentem em frequência, retornando a problemática das vagas hospitalares. Além disso, precisamos evitar o discurso de que, se uma pessoa tem uma doença preexistente, comorbidades ou é idosa, sua morte evitável é, de alguma maneira, aceitável.

A ideia, portanto, é que esses 2/3, sejam brasileiros, sejam alemães, não sejam infectados ao mesmo tempo. Que a transmissão ocorra mais devagar, ou em menor número ao longo do tempo, porque, caso contrário, quem precisar do atendimento médico pode chegar ao hospital e não encontrar insumos, leitos ou profissionais em quantidade suficiente para atender.

Aí, sim, a taxa de mortalidade começa a crescer, porque quem precisaria de assistência hospitalar e, com ela, passaria sem problemas pela Covid-19, acaba morrendo porque não haverá essa assistência, sem falar do impacto a toda uma população que já se encontra em tratamento intensivo nas unidades próprias para isso e, de repente, terão de lidar com uma tsunami de pessoas carregando um vírus novo que poderá ser propagado.

Por isso, os governos têm procurado minimizar os efeitos na saúde e, sim, também na economia, procurando reduzir o impacto econômico negativo ao máximo. A questão é que a maioria dos países parece seguir no sentido de concessão de benefícios, perdão de dívidas, assistência temporária, liberação de empréstimos a juros baixos para empresas, gratuidade nas contas de água e luz, etc.

Aqui, nosso governo brasileiro primeiro tenta emplacar uma MP questionável que poderia deixar trabalhadores sem salário por 4 meses. Na sequência, Bolsonaro faz um pronunciamento, contrariando a própria recomendação do Ministério da Saúde? O que é isso?

Em casos de pandemia assim, em que não se sabe muito, é normal que haja diferentes posições sobre o que é melhor fazer. A ideia do isolamento vertical já foi bastante debatida no Reino Unido, por exemplo, e é uma das opções que devem ser estudadas com rigor, porque as recomendações da OMS não podem ser seguidas à risca por todos os países.

No entanto, democracia é, além de enfrentamento, situação e oposição, consenso. Bolsonaro podia, como líder, ter costurado um acordo com os governadores, mesmo os que parecem mais radicais nas decisões sanitárias.

Só que não.

Contrariou tudo que vinha sendo feito desde então, deu a entender que somente idosos vão adoecer e morrer (e, além da falta de empatia, ele também é idoso!) e recomendou que todo mundo volte ao trabalho, criando uma crise institucional.

Crise institucional porque, agora, quem vai seguir o quê? Desde o começo, um comitê de crise poderia ter sido criado para gerir, com um discurso único oficial, o que estava por vir. Como fez Taiwan ou Coreia do Sul, que não são ditaduras como a China, mas foram elogiados porque reduziram os casos e a mortalidade apostando em medidas coordenadas e centralizadas.

A economia precisa ser considerada, sim, porque as pessoas precisam de dinheiro e trabalho para comer e viver. Eu mesmo critiquei algumas atitudes radicais de João Doria e até de prefeitos do Grande ABCD, que querem inclusive eliminar transporte público: sem ônibus, como médicos e enfermeiras mais pobres chegam ao hospital? Uber não é uma alternativa para todos.

No entanto, também não se pode tratar o caso como uma "gripezinha que só mata velho" quando vemos, na Itália, médicos tendo de escolher entre quem vive e quem morre e, na Espanha, shopping transformando pista de gelo em necrotério, sugerindo à população que crianças e adultos se tornem vetores potenciais multiplicados...

Até porque não existem comorbidades somente em idosos. Você não conhece nenhum jovem que tem uma comorbidade importante e está em plena idade produtiva? Que não tenha asma, bronquite, HIV, câncer, hipertensão, diabetes? Conheço vários, e o idoso pode morrer, como se a vida valesse bem menos, de uma situação que poderia ser evitada?

Vale lembrar que Espanha e Itália têm, além de uma rede hospitalar mais forte e estruturada que a nossa, bem menos desigualdades sociais.

A Covid-19 ainda não bateu com força nas favelas e periferias, mas vai. O SUS, geralmente única opção para os mais pobres, vai ter leito para todos que desenvolverem problemas respiratórios em pleno outono, quando à Covid-19 vão se somar os casos da gripe sazonal e pneumonias? As pessoas vão poder trabalhar assim?

É preciso haver um meio caminho entre o pânico e o descaso, entre proteger a economia e salvar vidas, entre ganhar dinheiro e fazer com que menos gente adoeça.

O Brasil, com ações descoordenadas entre estados e municípios e com um presidente que deixa de fazer o papel que lhe cabe porque o filho, que se recusa a fazer o papel de vereador do Rio, quer dar uma de radical e com uma população agora dividida sobre o que fazer, tem tudo para viver uma crise pior que a da Itália.

Aguardemos.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos