Que tal um feedback?
Estão na ordem do dia os sistemas automáticos que são capazes de gerar efeitos inteligentes, popularmente chamados de Inteligência Artificial (IA), mas que, na verdade, englobam muitas técnicas diferentes. Quase todas elas, porém, funcionam por meio de algum tipo de resposta do meio externo, ou seja, feedback. Um dos modelos mais famosos são as Redes Neurais Artificiais (RNA).
Os inevitáveis erros iniciais durante o treinamento (é esse o nome que se usa para a fase de aprendizado das redes neurais) são "informados", via feedback, e essa informação valiosa é usada para recalcular futuras respostas da rede. Eis, em curtíssimas palavras, como o seu celular consegue reconhecer rostos ou responder a comandos de voz.
Seres humanos também são assim. Pelo menos aqueles que têm a sabedoria e a sorte de receber feedback.
"Não repreendas o zombador porque te odiará, repreende o sábio, e ele te agradecerá" Prov. 9,8.
Feedback bom é como aquele grão de areia que entra na concha e, ao longo de anos, força-a a produzir uma pérola.
Por outro lado, não tem muita utilidade a avalanche de elogios ou comentários positivamente vagos.
Uma das melhores imagens que guardo sobre dar e receber feedback está no filme 'Diários de Motocicleta'. Trata-se do momento em que um médico, Dr. Hugo Pesce, que abriga em Lima os jovens viajantes (Ernesto Guevara de La Serna – que depois viria a ser conhecido como Che Guevara – e seu amigo Alberto Granado). Ele lhes pede para ler seu romance intitulado 'Latitudes do Silêncio', um manuscrito amador do qual se orgulhava muito. Ao fim da estadia em Lima, o autor cobra dos visitantes alguma opinião sobre o que leram.
Com o intuito de se livrar logo da tarefa, Alberto tece elogios que causam algum deleite ao médico. Guevara, por sua vez, apesar de desconfortável, diz com franqueza:
" Lamento que seu livro seja um pouco banal. Ele está cheio de chavões (...) basicamente, foi mal escrito. Isso o torna difícil de ler. Foi uma boa tentativa, mas acho que deve se dedicar ao que sabe fazer de melhor. Lamento, professor, mas pediu minha opinião e eu a dei."
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Não se pode dizer que Dr. Pesce ficou feliz com as palavras, mas logo percebeu quão valiosas haviam sido em relação às primeiras, que, apesar de doces, nada lhe traziam de útil.
"Puxa, filho. Ninguém foi tão sincero assim comigo. Você foi o único." e, olhando novamente para Alberto, completou: "O único".
Exige coragem falar certas coisas para as pessoas, especialmente quando o contato, ainda que corriqueiro, careça de intimidade ou de amizade. Quase sempre é mais fácil fazer como o Alberto do filme: deixar as pessoas com suas ilusões e erros. No final das contas, quem oferece a outra pessoa a chance de conhecer suas falhas se importa muito mais com ela do que aquele que prefere tecer ilusórias platitudes.
Com o tempo, a vida nos dá os feedbacks inevitáveis, e passamos a reconhecer o mal que nos causaram aqueles que tiveram a chance de nos alertar antes e não o fizeram.
"Quem repreende um homem depois achará favor, mais do que aquele que o lisonjeia com a língua" Prov. 28,23
São essas as duas coisas mais difíceis sobre este tema: saber dar e saber receber um feedback mais duro (feito com respeito, claro). Quem recebe terá a chance de se corrigir, e reconhecer o valor da crítica; quem dá, demonstra se importar de fato com a pessoa, e evita a desagradável sensação de perda de confiança que certamente virá quando outro fizer a devida observação corretiva que ele não quis fazer.
Ao contrário da maioria dos algoritmos de IA como as RNA's, nosso ciclo de treinamento nunca para, e os problemas e situações sempre mudam, mas ainda podemos nos servir da mesma velha ferramenta de aprendizado: as respostas que recebemos do meio externo... Quando aprenderemos a utilizá-la?
Originalmente publicado em 22 de agosto de 2019, revisado e cada vez mais relevante