Quem é o meu próximo?
Tendo sido espancado por assaltantes, um homem agonizante pede ajuda em um caminho ermo. Ao vê-lo, um sacerdote ignora seu sofrimento e passa pelo outro lado. Do mesmo modo procede um levita, que vem em seguida. Depois, passa um samaritano, que se compadece dele e o ajuda. Presta-lhe os primeiros socorros, coloca-o sobre o lombo de um animal de carga e o leva até uma hospedaria para continuar com o tratamento de suas feridas. No dia seguinte, o samaritano paga ao dono da hospedaria dois denários, isto é, uma quantia equivalente a dois dias de trabalho no campo, e lhe diz: “Cuida dele, e o que gastares a mais, quando eu retornar, te pagarei”. Nesse ponto, Jesus pergunta ao doutor da lei que o testava: “Qual dos três é o próximo daquele que estava no chão?”. O homem responde: “O que praticou a misericórdia com ele”.
A parábola do bom samaritano é pedra fundamental para qualquer discussão acerca da fraternidade, pois nos impõe uma reflexão incontornável: quem é o meu próximo? Quem é esse outro, a quem devo amar como a mim mesmo? Para entender a profundidade dessa história, é preciso lembrar que, no contexto da antiga Palestina, o povo judeu estava dividido em dois grandes grupos: aqueles que tinham como base Jerusalém e aqueles que se baseavam na Samaria. O problema é que, ao longo dos anos, os judeus de Jerusalém e os samaritanos aprenderam a se odiar mutuamente. Eles se exasperavam. O texto bíblico não deixa claro se o agonizante era judeu de Jerusalém, mas o seu próximo, está dito, era samaritano. Como os desafetos nos tornam cruéis, seria “natural” o samaritano deixar aquele homem morrer, pois provavelmente era de Jerusalém.
A intolerância entre os judeus de Jerusalém e os samaritanos perpassa todos os casos em que o ódio inviabiliza a convivência. As torcidas rivais, a homofobia, a misoginia, o racismo, a xenofobia são temas que devem ser combatidos desde a mais tenra infância. Nenhum bebê nasce intolerante; ele aprende a sê-lo. Nascemos como sementes, que podem germinar, florescer, frutificar, ou não. Certa vez, eu estava ensinando meu filho a andar de bicicleta quando se aproximou de nós um menino que morava no mesmo condomínio. Meu filho tinha 3 anos; ele, não mais que 10. Perguntei se queria brincar conosco. Ele disse que não tinha mais bicicleta. “O que houve com a sua bicicleta?”, perguntei curioso. Ele respondeu com desprezo: “Minha mãe deu a um pobre”. Como professor, eu sabia que ele, sendo criança, não trazia consigo, como característica inata, o desprezo pelo outro, a quem se referiu simplesmente como “pobre”. Ele estava apenas repetindo um padrão aprendido em casa. Sendo semente, em breve brotaria uma muda podre.
O processo pelo qual aprendemos a nos comportar de modo a sermos aceitos pela sociedade é chamado de socialização. Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930–2002), nossa personalidade é formada na socialização primária, feita pela educação em família. Quando a criança entra na escola, começa a viver a socialização secundária, passando a aprender a conviver em grupos a partir das bases de socialização recebidas em casa.
Até a década de 1960, essas duas instâncias de educação (família e escola) estavam bastante separadas no Brasil, cada uma com um papel bastante claro na formação da criança. Hoje, esses papéis estão embaralhados. Há um conflito entre as famílias e as escolas, principalmente porque os pais querem que as escolas se responsabilizem pela socialização total das crianças, assumindo a responsabilidade pela educação primária. Ou seja, os pais estão terceirizando a educação dos filhos. Ao colocá-los na escola mais cara, no psicólogo, no reforço, na colônia de férias, na recreação, no balé, estão, na verdade, pagando para que outros assumam uma responsabilidade que é sua. No fundo, voltam à ideia remota de que, para ter sucesso na educação dos filhos, é preciso sacrifício, sofrimento, e nisto consiste seu propósito como pais.
Toda essa problemática nos mostra que a fraternidade, como qualquer valor moral, deve ser ensinada em casa e na escola. Ao estabelecer como meta da Educação Básica a formação de uma sociedade ética, justa e igualitária, a BNCC deixa claro que a formação moral deve ser compartilhada. É preciso considerar o sentido mais profundo da educação, palavra que vem do latim (educare) e significa “levar a pessoa da escuridão para a luz”. Na prática, é uma mudança de paradigmas. Em vez de se preparar a criança para uma competição de sobrevivência, prepara-se para a vida, o que confere ao todo um sentido muito mais amplo. A educação serve para fazer com que as pessoas, nascendo sementes, possam germinar, florescer, frutificar. Caso contrário, continuarão sendo ensinadas a sobreviver em um mundo competitivo e cruel, onde todos são inimigos, exatamente como os judeus de Jerusalém e os judeus da Samaria.
Por esse e outros motivos que vemos diariamente em nossas salas de aula alunos tão desajustados. Eles vêm de lares desajustados, com noções muito primitivas de fraternidade e amor. Por isso, meus amigos, neste ano novo, façamos uma promessa a nós mesmos: tracemos como meta a negação desse modelo excludente e comecemos a mostrar aos alunos que cada pessoa é única, e não a única. Procuremos mostrar a eles que o próximo não é somente quem está ao nosso lado, mas aquele a quem devemos estender a mão sempre que necessário, independentemente de quem ele seja. Convenhamos que, para nós, simples criaturas imperfeitas, amar nossos inimigos é tarefa extremamente difícil. Comecemos, então, pelo menos, a não querer o mal deles. Por si só, essa já seria uma meta bastante nobre para uma existência.
Lécio Cordeiro
Revista Construir Notícias, edição 110.