Quem somos nós?
Um registro sobre o dia da Visibilidade Trans (2019)
Visibilidade é uma medida de quanto se enxerga antes da penumbra. Sobre as pessoas trans, essa é a medida de quanto somos vistas dentro da sociedade. Ainda nos persegue o estigma da ausência de formação, que nos leva ao estigma da prostituição ou do desemprego. Na penumbra.
Não se encontram pessoas trans nos ambientes do cotidiano. Quantas pessoas trans passaram no vestibular? Daquelas pessoas que sobreviveram à escola e concluíram sua formação, quantas passaram no vestibular? Quando saem as listas de aprovados, corremos buscar nomes na internet para entrosar, apresentar o curso, recepcionar. Nunca puderam me encontrar: o nome que apareceu na lista de chamada diverge do meu verdadeiro nome. Mesmo após a decisão do STF que permite a mudança simplificada de nome e sexo no registro de nascimento, apenas maiores de 18 anos são aptos a fazer sem consentimento familiar. Ocorre que as pessoas trans não estão presentes nas famílias.
Também não estamos no ambiente de trabalho. Acontece que o trabalho é uma condição humana. Na mais distante civilização, no ambiente mais remoto ao nosso modelo de vida ocidental, as pessoas ainda precisam se alimentar. E para isso, trabalham. Agricultura, pecuária, caça, coleta, manufatura. Todas as sociedades têm suas formas de trabalho. As pessoas trans são vistas como alheias das atividades de trabalho e, portanto, não são consideradas parte da sociedade.
Não somente de enxergar as pessoas trans no cotidiano, no sentido sensorial, trata-se a visibilidade. Também não temos história. Tal como as mulheres cisgêneras, se fizemos parte da história, não sabemos. Sócrates é parte do imaginário popular. Pode-se encontrar quem não conheça sua obra, mas difícil será encontrar quem não reconheça esse nome. "Só sei que nada sei" é uma frase atribuída a Sócrates e por conta dela, foi julgado e condenado à morte. Sua Filosofia abalou o conforto dos poderosos de Atenas. Morte injusta e digna de memória. Porém, não reconhecemos o nome de Hipátia de Alexandria.
Hipátia era uma matemática adepta da filosofia de Platão e era uma professora de destaque na Escola de Alexandria. Era de religião pagã, mas sempre educou alunos cristãos e um deles eventualmente se tornou Bispo em uma região que hoje é parte da Líbia. Hipátia se tornou ainda bastante popular graças ao apoio do Bispo Theófilo de Alexandria, que a tinha como oponente filosófica. Porém, mais tarde o Bispo morre e seu sucessor inicia uma perseguição contra judeus e pagãos. Hipátia foi vítima de propaganda que a "denunciava" como pagã e incitava a violência, até o momento de seu assassinato por uma turba de cristãos. Uma morte igualmente injusta, igualmente provocada por jogos de poder com os quais ela não tinha relação.
Dessa visibilidade também nos falta: o registro de nossos impactos no mundo. E o veículo que temos para causar impacto é, majoritariamente, o trabalho. Seja através de trabalho voluntário, formal ou informal. É urgente e louvável a preocupação em se buscar e empregar a população trans. O referencial de pessoas como nós que conseguiram se estabelecer como pessoas ativas na sociedade é fundamental para as novas gerações terem provas de que é possível continuar.
Encerro aqui, agradecendo a todas as pessoas que estão mobilizando colegas nos espaços de trabalho para alertar dessa importância. Dessas pessoas, agradeço especialmente à Maite Schneider do Transempregos. Seu trabalho é pioneiro e histórico e será carregado no sucesso de cada um de nós.