Razão e loucura
É possível reconhecer os traços rudes da loucura nas imagens que entram pela tela de TV. Uma horda de desesperados lutando pela vida desafia policiais e bombas de gás à procura de salvação para a sua falta de lugar no mundo. Fogem da morte com suas crianças no colo e não encontram a acolhida implorada. A União Europeia se mostra incapaz de achar solução para abrigar as mais de 400 mil pessoas que chegaram ao continente desde o início do ano.
Do lado de cá da tela de TV, ficamos pasmos com espetáculo tão macabro. Como razão e loucura não podem coexistir – onde mora uma, a outra desabita –, resta lembrar que sempre há uma escolha a fazer. Ambas, afinal, guardam estreita relação com os altares em que depositamos nossas crenças e nossa fé, com o que curtimos e compartilhamos nas redes sociais e fora delas. O mundo não existe sem o olhar de cada um, primeiro para dentro e depois para fora em forma de projeção. Nada acontece à nossa revelia.
Como ilustração, basta olhar para a nossa loucura particular. Os presídios brasileiros estão superlotados, transformados em mercados de drogas, antros de corrupção, promiscuidade e opressão. Criamos um inferno para segregar gente odiada, mas é impossível não participar dele de alguma forma. Os presos um dia saem e voltam às ruas, brutalizados. A taxa de reincidência criminal é superior a 70% e, por isso, há muitos de nós que dissemina sua fé na máxima de que “bandido bom é bandido morto”. É a loucura.
Houve, porém, quem diante do inferno desejou o paraíso. Em 1972, o advogado Mário Ottoboni e um grupo de amigos criaram, em São José dos Campos, a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs) e sua metodologia de recuperação. Em Minas, já são mais de 40 unidades e cada uma delas abriga até 200 pessoas. Os internos são responsáveis pela manutenção e segurança do prédio, seguem disciplina rígida, estudam, recebem assessoria jurídica, atendimento médico e psicológico, e têm a espiritualidade estimulada.
Apesar de terem praticado toda sorte de crimes, não são tratados de acordo com o erro que cometeram, mas valorizados e incentivados a aproveitar a oportunidade de corrigi-los. Não há policiais, agentes penitenciários nem armas. Os próprios internos têm as chaves das celas e vários, quando voltam à liberdade, são contratados por empresas congregadas no Instituto Minas pela Paz. A taxa de reincidência criminal das APACs é inferior a 10%, metade da alcançada no reconhecidamente melhor sistema prisional do mundo, o da Noruega, que é de 20%. As ruas das comunidades que lutaram para ter uma APAC estão mais seguras. É a razão.
De volta à sala de TV, é novamente a oportunidade da escolha que nos visita. O mundo assiste o momento crucial em que ou criaremos um exemplo inesquecível de fraternidade, e nada será como antes, ou escreveremos uma das mais tristes páginas da história da humanidade. E nada será como antes.
Publicado no jornal Hoje em Dia
psicanalista titular da SPID e participante da Escola Letra Freudiana, cientista social, gestora pública federal,coordenadora de seminários, supervisão e orientação clínica para formação de psicanalistas
9 aE nada será como antes... a humanidade constroi sua história sobre a barbárie...