"ReAntropofagia" - Arte e ativismo na América Latina
Quando os portugueses chegaram ao território considerado hoje o Brasil, já haviam cerca de cinco milhões de povos originários, divididos em mais de mil tribos diferentes, que foram generalizados e chamados de índios. Essa população possuía diferenças culturais e linguísticas. Como exemplo, podemos destacar os Tupis, que dominavam a faixa litorânea do norte até o sul do que corresponde hoje ao estado de São Paulo; os Guaranis, que ficavam na bacia Paraná-Paraguai e no litoral do extremo sul; o povo Pataxó Hãhãhãe, no sul da Bahia.
Com a chegada dos europeus, os nativos sofreram violências em todos os âmbitos, como a física, sexual (que resultou na população mestiça que existe hoje no país), cultural, religiosa, catequizando os nativos o os obrigando a seguir a religião católica, proibindo seus ritos e crenças. Além disso, houveram diversas crises epidêmicas, que dizimaram milhares de indígenas, com doença que ainda não haviam chegado na América.
Assim, esses povos foram privados da vida que tinham até o momento da invasão europeia ao território, que hoje é o Brasil. Tendo também sua cultura afastada da população ao longo dos anos, visto que o que vinha da Europa era considerado bom e civilizado, enquanto a cultura e costumes indígenas era considerados incivilizados e selvagem. Criando um preconceito sobre esse povo ao longo do tempo e que percorre até os dias atuais.
Exemplo dessa imposição cultural pode ser vista no quadro “Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles, que retrata a fé católica como a salvação desses povos, que eram considerados pagãos, pelos europeus. Tal fator foi citado na carta de Pero Vaz de Caminha dizendo que “o melhor fruto que dela pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”
A Arte Moderna surge na Europa no final do século XIX e se consolidou no Brasil em 1922, com a Semana de Arte Moderna, ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo. Chegando em um momento de conturbação política, com o país no controle dos grandes latifundiários de São Paulo e Minas Gerais. Tal corrente artística é caracterizada pela quebra com o formalismo, que atingia inclusive o campo literário.
A primeira fase do movimento modernista buscava uma identidade nacional, que propunha destruição dos modelos vigentes até o momento. Nesse momento a cultura brasileira foi posta em cena, sendo valorizada. Dentre as correntes dessa fase estava o Movimento Antropofágico, liderado por Oswald de Andrade, Raul Boop, Tarsila do Amaral e Mario de Andrade e foi um dos movimentos artísticos mais importantes da arte brasileira.
O nome do movimento foi retirado de um ritual indígena de canibalismo, com a intensão de devorar e digerir a cultura europeia no Brasil, antes de se transformar em uma expressão artística nacional. Na antropofagia, praticada por alguns povos indígenas, devorar o adversário é sinônimo de respeito as virtudes e esperança de que elas venham a fazer parte do corpo daquele que devorou. Dessa forma, o movimento antropofágico resgatou a cultura primitiva dos povos originários, colocando-as em cenas, o que antes não era aceito.
Recomendados pelo LinkedIn
Dentre as grandes obras desse período está o livro “Macunaíma” de Mario de Andrade, um herói sem nenhum caráter. O livro traz a história de um indígena nascido na Floresta Amazônica que tem como uma das principais características a preguiça. Esse índio é uma releitura do índio romântico do passado e que representa a sociedade brasileira.
Logo, é nítido notar que a cultura indígena foi contada e representada artisticamente por meio da visão de pessoas brancas e não de artistas indígenas. Os artistas modernistas resgataram os povos originários mas por uma perspectiva branca, de quem cresceu e vive em grandes centros urbanos, que teve contado com a cultura europeia. Dessa forma, não foi dado um real reconhecimento para as artes dos povos originários e valorização de seus artistas. Afinal, onde estavam os artistas indígenas representando a antropofagia?
No Brasil contemporâneo, os artistas indígenas estão ganhando espaço e utilizando a arte como forma de ativismo e resistência. Em um momento em que os direitos do índios estão sendo ameaçados, meio-ambiente cada vez mais devastado, em que esses povos sofrem com os latifundiários, que ameaçam e exterminam povos indígenas, é preciso ter voz para que a população possa entender o que essas pessoas estão realmente passando.
A arte indígena vem como forma de romper com a cultura colonial, por meio do pensamento decolonial. Busca-se então, desconstruir as narrativas, incluindo as vozes que foram excluídas, decolonizando o conhecimento, poderes, etc.
O artista Denilson Baniwa é natural da aldeia Darí, no Rio Negro. É considerado um antropófago, visto que em suas obras se apropria de elementos ocidentais, a fim de descolonizálos. Baniwa luta pelos direitos dos povos indígenas e é um exemplo de resistência dos povos originários. Dentre suas exposições há a “Terra Brasilis: o Agro não é pop”, que mostra a luta dos povos indígenas contra os latifúndios que ameaçam a existência desses povos.
A obra ReAntropofagia traz, segundo o artista “o simulacro Macunaíma, jazem juntos a ideia de povo brasileiro e a antropofagia temperada com bordeaux e pax magnolica”. Para ele a ReAntropofagia tem como objetivo “devorar” tudo, sem a utilização de questões consideradas civilizadas, de caráter colonizador, o que para ele o modernismo não conseguiu fazer. Assim “a arte produzida por artistas indígenas está mais viva que nunca, na cidade ou na aldeia, ‘contra o epistemicídio, contra a necropolítica, porque tupy or not tupy não é mais a questão”
Logo, visto que a população indígena sofreu e ainda sofre inúmeros massacres, devido ao processo de colonização, é preciso que haja apoio a seus artistas, para que possam ter voz, denunciar o que está ocorrendo por meio da arte. Também é preciso difundir a cultura e arte dos diversos povos originários, para que possamos ter uma arte realmente brasileira. É preciso dar voz para que eles possam contar sua própria história e não que homens brancos contém por eles. Precisamos da arte indígena para que possamos conhecer a cultura e arte brasileira, para que possamos conhecer a população que habita nosso país. É preciso que esses fatos ocorram para que o processo de decolonização possa ser efetuado com sucesso.