Regime Geral de Proteção do Denunciante em Portugal – Parte I: sua contextualização ESG
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Regime Geral de Proteção do Denunciante em Portugal – Parte I: sua contextualização ESG

A Lei nº 93/2021, de 20 de dezembro, entrou em vigor em Portugal em 18 de junho deste ano, dispondo sobre o regime de proteção dos denunciantes, pessoas singulares (leia-se pessoas físicas), tornando obrigatório para: (a) as pessoas coletivas (leia-se, empresas ou companhias/corporações), de direito público ou privado, que empreguem 50 ou mais trabalhadores, (b) as entidades contempladas no âmbito dos atos da União Europeia, referenciados na parte i.B e ii do anexo da Diretiva (EU) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho que tenham canais de denúncia interna, (c) as sucursais, em Portugal, de tais entidades coletivas sediadas no exterior. Dentre tais obrigadas de direito privado, as que empreguem entre 50 e 249 trabalhadores poderão compartilhar recursos para a recepção de tais denúncias e os seus desdobramentos.  

O interessante dessa legislação é mais do que o viés da obrigatoriedade do canal de denúncias (que, no geral, aqui no Brasil, acabamos por denominar de canal de relatos ou canal de escuta, justamente na tentativa de reduzir o impacto terminológico e o tornar algo mais amigável), mas, antes, o de proteção aos direitos do denunciante, o que a torna, em certa medida, uma proposta mais condizente com a necessidade do que um verdadeiro canal deve ser: um porto seguro para que denúncias por infrações (crimes ou contraordenações) sejam feitas sem medo de represálias e com garantias claras de segurança no relato, que pode ser feito pelo denunciante, no âmbito do desempenho de sua atividade profissional, sejam estes trabalhadores, prestadores de serviços, contratantes, subcontratantes, fornecedores, sócios/acionistas, membros de órgãos fiscais ou administrativos (conselhos fiscal ou de administração e diretorias), voluntários e estagiários.

Ainda a se destacar que o denunciante pode ter obtido as informações que embasarão a denúncia quer depois de já ter cessado sua relação profissional com a entidade, quer mesmo durante o processo de recrutamento ou negociação pré-contratual de uma relação a se constituir ou constituída, o que mostra a amplitude de proteção da referida legislação, em linha com o que se propõe seja o universo de stakeholders no qual a entidade está inserida.

A denúncia, a priori, é feita por meio de canal interno, só podendo o denunciante se socorrer de canais externos se (i) não existir canal interno,  ou (ii) este seja direcionado apenas a trabalhadores e o denunciante não se enquadre neste perfil, ou (iii) tenha receio de que a denúncia não seja eficazmente reconhecida ou resolvida no nível interno (e aqui se reforça o receio de retaliações), ou (iv) já tendo feito a denúncia, não lhe apresentaram ou comunicaram as medidas previstas ou adotadas na sequência da denúncia no prazo máximo de três meses a contar da data da sua recepção, ou no prazo de 15 dias após ter requerido a comunicação sobre o resultado, ou (v) a infração constitua crime ou contraordenação punível com multa superior a 50.000 euros.

Tendo feito a denúncia por canal interno ou externo, o denunciante poderá divulgar publicamente uma infração apenas quando: (i) tiver motivos razoáveis para crer que (a) a infração pode constituir um perigo iminente ou manifesto para o interesse público, ou (b) a infração não será eficazmente conhecida ou resolvida pelas autoridades competentes, atendendo às circunstâncias específicas do caso, ou (b) existe um risco de retaliação em caso de denúncia externa; ou (ii)  tiver apresentado uma denúncia interna e uma denúncia externa, ou diretamente uma denúncia externa sem que tenham sido adotadas medidas adequadas nos prazos previstos nos artigos 11 e 15 da referida legislação.[1]

Em quaisquer canais de denúncia – internos ou externos – devem ser asseguradas a independência, a imparcialidade, a confidencialidade, a proteção de dados, o sigilo e a ausência de conflitos de interesses no desempenho das funções dos designados para tratar das denúncias, o que está em linha com as boas práticas já adotadas aqui no Brasil quando se avalia um Programa de Integridade eficaz e eficiente. 

Ademais, quando das denúncias por canais internos, podem as mesmas ser por escrito ou verbais (telefone ou por outros meios de mensagem de voz, e até mesmo, se requerido pelo denunciante, via reunião presencial), anônimas ou não e, nesta última hipótese, o denunciante poderá se valer de autenticação eletrônica via uso do cartão cidadão ou chave móvel digital, ou, ainda, via outros meios de identificação eletrônica emitidos em outros Estados-Membros e reconhecidos para o efeito nos termos do artigo 6º do Regulamento (UE) nº 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014, desde que, em qualquer caso, os meios estejam disponíveis. Verifica-se que a intenção é facilitar o exercício do direito à denúncia. 

Importante ressalvar-se que, quando se está a falar em canal de denúncia externo, está por designar-se autoridades com atribuições e competências para receber e tratar as matérias relatadas, a saber: a) o Ministério Público; b) os órgãos de polícia criminal; c) o Banco de Portugal; d) as autoridades administrativas independentes; e) os institutos públicos; f) as inspeções-gerais e entidades equiparadas e outros serviços centrais da administração direta do Estado dotados de autonomia administrativa; g) as autarquias locais; e h) as associações públicas. Portanto, a denúncia feita via canal operado por terceiros externos às entidades, para efeito da recepção das denúncias, são consideradas denúncias internas.

Esses são apenas alguns apontamentos básicos a respeito da referida legislação, que compreende, ainda, medidas protetivas e de apoio aos denunciantes (Capítulo III), bem como tutela jurisdicional aos mesmos para o pleno exercício do seu direito de defesa (Capítulo IV), que não pode e não será considerado ato gerador de responsabilização, desde que exercido dentro dos parâmetros legais.

Muito mais a se destacar e apresentar sobre a referida legislação, de forma a trazer parâmetros legais que possam servir de balizamento para a melhorias nos canais de relato ou denúncia adotados aqui no Brasil. Mas a intenção foi situar o texto e alocá-lo como um exemplo claro do que queremos num universo corporativo de ESG.

O canal de denúncias e toda a estruturação de como recepcionar, investigar e tratar os relatos que por meio dele chegam deve ser um termômetro, como já dito, de um Programa de Integridade bem desenhado, eficaz e eficiente, pois, contrariamente ao que muitos com cadeiras corporativas acreditam, a não existência de relatos não significa que “está tudo andando bem”.

Nessa linha, por óbvio, aqui temos um elemento chave para que (a) um ambiente de trabalho, privado ou público, seja avaliado como estando adequado sob as ópticas legais e regulatórias, (b) a entidade ateste que tem uma boa governança dos temas afetos à saúde e à integridade dos trabalhadores, bem como (c) se faça uma leitura da recepção e do impacto social, na justa medida em que se tem um canal aberto a todos os stakeholders da entidade, que poderão relatar atuação adversa ao contexto social dessa entidade (por seus dirigentes ou corpo laborativo). 

E a proteção aos direitos do denunciante é o viés mais importante para que se possa usar o canal para barrar, eliminar e/ou mitigar (a depender dos atos) situações que poderiam tornar as atividades desempenhadas por aquela entidade perniciosas para seus colaboradores, clientes, fornecedores, parceiros e investidores. 

Entendo que podemos nos valer deste valoroso arcabouço legislativo para avançar mais nas discussões dos direitos dos denunciantes e ter um arcabouço mais maduro para os canais de denúncia, reforçando a cultura de compliance nas entidades, justamente sob o viés singular da pessoa relatante. 

[1] Art. 11. Seguimento da denúncia interna

1 — As entidades obrigadas notificam, no prazo de sete dias, o denunciante da receção da denúncia e informam-no, de forma clara e acessível, dos requisitos, autoridades competentes e forma e admissibilidade da denúncia externa, nos termos do n.o 2 do artigo 7.o e dos artigos 12.o e 14.o

2 — No seguimento da denúncia, as entidades obrigadas praticam os atos internos adequados à verificação das alegações aí contidas e, se for caso disso, à cessação da infração denunciada, inclusive através da abertura de um inquérito interno ou da comunicação a autoridade competente para investigação da infração, incluindo as instituições, órgãos ou organismos da União Europeia.

3 — As entidades obrigadas comunicam ao denunciante as medidas previstas ou adotadas para dar seguimento à denúncia e a respetiva fundamentação, no prazo máximo de três meses a contar da data da receção da denúncia.

4 — O denunciante pode requerer, a qualquer momento, que as entidades obrigadas lhe comuniquem o resultado da análise efetuada à denúncia no prazo de 15 dias após a respetiva conclusão. (...)

Art. 15. Seguimento da denúncia externa

1 — As autoridades competentes notificam o denunciante da receção da denúncia no prazo de sete dias, salvo pedido expresso em contrário do denunciante ou caso tenham motivos razoáveis para crer que a notificação pode comprometer a proteção da identidade do denunciante.

2 — No seguimento da denúncia, as autoridades competentes praticam os atos adequados à verificação das alegações aí contidas e, se for caso disso, à cessação da infração denunciada, inclusive através da abertura de inquérito ou de processo ou da comunicação a autoridade com- petente, incluindo as instituições, órgãos ou organismos da União Europeia.

3 — As autoridades competentes comunicam ao denunciante as medidas previstas ou adotadas para dar seguimento à denúncia e a respetiva fundamentação no prazo máximo de três meses a contar da data da receção da denúncia, ou de seis meses quando a complexidade da denúncia o justifique.

4 — O denunciante pode requerer, a qualquer momento, que as autoridades competentes lhe comuniquem o resultado da análise efetuada à denúncia no prazo de 15 dias após a respetiva conclusão 

(disponível em: <https://files.dre.pt/1s/2021/12/24400/0000300015.pdf>, acesso em: 7.9.2022.

Manuella Falcão

Diretora Jurídica / Governance Officer

2 a

Parabéns pelo artigo, Andréa U. !

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