ResenhaJur 34 - Regime jurídico-administrativo
Regime jurídico-administrativo: princípios jurídicos, finalidade pública e racionalidade decisória.
“Administrar é atividade daquele que não é senhor absoluto”.
Ruy Cirne Lima
O clássico intitulado "Principes et notions élémentaires - pratiques didactiques et historiques droit public administratif", escrito por Adèle Gabriel Denis BOUCHENE-LEFER, destaca-se como estudo pioneiro na exploração da essência do direito administrativo oitocentista, ao invés de meramente se debruçar sobre a descrição do regime jurídico-administrativo.
A resposta contemporânea oferecida pela semente plantada por BOUCHENE-LEFER é a seguinte: o Direito Administrativo é a disciplina jurídica que lida com a aplicação da legalidade às entidades que compõem a administração pública, incluindo empresas estatais, constituindo-se o campo crucial para sua atuação a distinção entre conduta inadequada individual e falhas no serviço prestado por essas entidades. Cabe aduzir, contudo, que a proposição dessa aplicação do direito administrativo com base nos objetivos da Administração Pública, trata-se de abordagem vinculada à escola do serviço público, que lhe é posterior. Tal fato só reforça seu pioneirismo.
Expressões e conceitos usados para definir ou delinear o direito administrativo, muitas vezes vagos e ambíguos, trazem múltiplas interpretações para o termo. Porém, a maior complexidade em seu campo de estudo reside em determinar a fronteira precisa entre os institutos de Direito Público e Direito Privado, visto que uma mesma norma pode impactar ambas as esferas jurídicas. Esforços têm sido feitos para discernir os princípios fundamentais de cada seara, identificando suas respectivas consequências.
Entretanto, essa divisão singular pode não ser logicamente coerente ou trazer benefícios teóricos e práticos significativos. Importa questionar se essa distinção está desviando as mentes perspicazes e filosóficas de um estudo mais profundo sobre as questões administrativas, e se seus elementos harmonizam com os princípios fundamentais da ordem social.
A administração exige deliberação e compreensão da essência da lei para decidir corretamente, um juízo valorativo e finalístico. É vital compreender os liames lógicas entre normas para alcançar uma compreensão mais profunda da sociedade. Como no mundo físico, o mundo social é governado por regras e preceitos reconhecidos que buscam regular as relações entre administração e administrados, ou vice-versa, com base em princípios fundamentais amplamente aceitos, exige uma compreensão intrínseca para avançar na regulamentação dessas relações.
A sociedade, no aspecto do comportamento coletivo, e a mente humana, em caráter individual, tem a capacidade de entender o princípio da existência moral e aplicá-lo ao Direito Administrativo, tornando-o uma ciência que busca regulamentar de maneira justa e consistente as interações sociais, em consonância com os princípios essenciais da ordem jurídica e política.
De acordo com o conceito apresentado, o papel da lei no direito administrativo não é o de se opor à manutenção e preservação das conquistas nesse campo, mas sim garantir a livre execução das atividades comuns a todos os cidadãos, regulando e definindo essas interrelações. No entanto, essa posição pode ser inconsistente e imprecisa, pois a própria Administração não goza de direitos, apenas funções, atribuições e competências, atuando em diferentes capacidades jurídicas no cumprimento de suas responsabilidades. Além disso, a ideia de que a ciência jurídico-administrativa (rechts und verwaltungswissenschaft) visa a regular as relações entre cidadãos e administração é equivocada, já que seu propósito principal é estabelecer os direitos e deveres mútuos do Estado e dos indivíduos.
Assim, o direito público, incluindo o direito administrativo, tem a finalidade de regulamentar interesses e direitos, responsabilidades e obrigações, não apenas a forma como são exercidos. Apenas as disposições relativas à competência e procedimento regem as relações entre cidadãos e administração, por meio de suas entidades ou agentes. No entanto, essa interpretação confunde o resultado com o objetivo, não reconhecendo-lhes sua verdadeira natureza jurídico-administrativa de possibilidades e limites.
Portanto, ao reafirmar-se que a verdadeira essência do direito administrativo repousa na definição de direitos e deveres mútuos entre Estado e cidadãos, sendo essa sua principal finalidade, de forma excludente, trata-se de um erro crasso desviar-se dessa definição para oferecer uma interpretação vaga e imprecisa sobre as relações com a administração. O propósito do direito público não é regular as relações entre administração e administrados, mas garantir os direitos e o cumprimento mútuo de funções, com foco principal na aplicação hermenêutica da lei, em termos claros, lógicos e dotados de propriedade linguística.
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Dito isso, dedicar-se à análise do regime jurídico-administrativo é meramente delinear o conjunto de princípios e institutos informadores do sistema administrativo, todos derivados dos dois princípios centrais e limitantes: a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade dos interesses públicos. Essa dualidade do regime administrativo que, por um lado, apresenta-se como a fixação externa dos objetivos a serem alcançados, implementados pelo jogo democrático desde a norma constitucional; e, por outro, configura a obrigação do agente de cumprir fielmente os objetivos da norma, deixando de lado suas preferências pessoais, representa a integralidade de sua força normativa.
Nesse contexto, a opção da Constituição por definir o regime administrativo através dos princípios da Administração (art. 37, caput) o qualifica como um regime de atuação mais principiológica do que simplesmente executório. É tanto que a adoção de um regime próximo ao privado não entra em conflito com nenhum dos princípios constitucionais publicistas, inclusive quando da atuação estatal por meio de estruturas empresariais.
Vista dessa maneira, a utilização ou não de métodos privados pela Administração não afeta a essência do seu modelo de operação. Mesmo quando recorre a vias privadas, a Administração pode fielmente aplicar os valores que constituem sua atuação, conforme assentado na Constituição. Não existe contradição entre a atuação administrativa e o uso de meios privados. O processo de tomada de decisões administrativas se mantém válidos, mesmo quando a Administração recorre a mecanismos típicos do regime privado.
Vale ressaltar que, ao adotar um regime que não envolve prerrogativas de autoridade, a essência da Administração não é prejudicada. Quer se utilize do regime considerado público, quer privado, a Administração continua a ser entidade distinta dos particulares, sujeita a uma base de princípios e prerrogativas diferentes daquela imposta aos cidadãos.
Na prática, a atividade administrativa como a concretização impessoal de objetivos normativos não se reduz a uma atividade privada, mesmo quando utiliza meios do direito privado para alcançar seus objetivos. A própria decisão de utilizar métodos privados, quando disponíveis para o administrador, é mera deliberação de caráter público.
A mesma problemática se reflete no desenvolvimento da burocracia enquanto fenômeno ligado à modernidade. Enquanto organizações buscaram maior eficiência e rapidez ao especializar tarefas, distribuir competências, seguir hierarquias e profissionalizar, essa transformação, ao invés de trazer apenas melhorias, também levou ao crescimento do burocratismo como forma de racionalidade decisória. A burocracia passou a estimular um modelo de reprodução procedimental absolutamente desfuncional, sendo até mesmo referida como voltada para seus próprios interesses, em detrimento de suas funções primordiais.
O normativismo legalista, a falta de transparência e a cultura da decisão tecnicista, juntamente com o formalismo exacerbado, contribuem para essa "auto referência" da burocracia. Ao concordar com críticas ao modelo burocrático, considera-se que o modelo gerencial não é plenamente compatível com os objetivos regime administrativo estabelecidos na Constituição de 1988. Diante disso, propõem-se um modelo que aproveite o caráter ordenador e organizacional, ao mesmo tempo em que rechace as disfunções do burocratismo. Isso ocorre através da ênfase em valores republicanos, democráticos e na visão do cidadão como protagonista das transformações sociais. O caráter reflexivo da burocracia deve considerar o cidadão o destinatário das finalidades públicas e não um "cliente" ou "súdito" do Estado.
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1 aComo sempre, o meu querido amigo escreve conteúdos edificantes. Parabéns pelo artigo!
Advogado | Oficial da Reserva do Exército | Mestre em Ciências Militares | Direito Público e Regulatório | Pós-graduado em Defesa Nacional | Docente na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
1 aExcelente artigo ! Parabéns