A relação do acidente do Air France 447 com a importância de estudar o seu voo com antecedência
Não são poucos os amigos e colegas de aviação que decidiram sair do Brasil em busca de céus mais amigáveis. Ainda que a minha carreira esteja resumida ao Brasil e a uma aviação muito diferente da linha aérea, estar constantemente inserido à rotina destes colegas e amigos e voando com certa frequência continua - e sempre será - uma fonte inesgotável de aprendizados.
Dias atrás, enquanto eu conversava com um destes grandes amigos que optaram por continuar a vida no deserto do Oriente Médio, não pude deixar de ficar surpreso quando, dois dias antes de mais um voo que sairia de Doha (Catar) para Oslo (Noruega) e por padrão da própria empresa aérea, ele dedicava algumas horas de seu tempo livre para estudar o voo. Em um iPad, logado no website da companhia, todas as informações relativas à rota estão disponíveis: o Flight Plan, a navegação, o briefing meteorológico, NOTAM's, tipo de operação, FIR's e suas frequências, ERC's e outras inúmeras considerações valiosas ao voo. Quantos de nós, seja antes de um voo local em um monomotor à pistão ou antes de cinco etapas domésticas em um jato de médio alcance, dedicamos tempo e energia para nos anteciparmos ao que encontraremos durante o trabalho? Ainda que a sua resposta seja "mas eu faço isso todos os dias!", antecipar-se às ações, restrições, ao que se pode encontrar nos aeroportos em que você pousará e até mesmo às eventuais modificações de regras no tráfego aéreo local faz toda a diferença em uma operação considerada segura.
No dia 31 de Maio de 2009, no aeroporto internacional do Rio de Janeiro (Galeão), um Airbus A330 da Air France foi preparado para mais uma travessia do Atlântico. O voo 447, serviço tradicional e regular da companhia francesa, decolara às 19h do Rio e era operado naquele dia pelo F-GZCP, durando pouco mais de onze horas e chegando à belíssima capital francesa no começo da tarde do dia seguinte. Era um dia de casa cheia: com 228 pessoas a bordo divididas entre três classes de serviço, apenas um único assento estava vago no Airbus. Tratava-se, para a tripulação técnica e comercial, de um voo puramente rotineiro. Acostumados às travessias oceânicas, o comandante Marc Dubois e os Primeiros-Oficiais David Robert e Pierre-Cedric Bonin já haviam cruzado o atlântico em direção ao Brasil ao menos dez vezes a bordo dos A330 e A340 da Air France nos dois anos anteriores àquele, entre 2007 e 2009.
Cabe um aviso importante antes de tudo: apesar de constarem nos "fatores contribuintes" do relatório final do AF447, não abordaremos, propositalmente, os aspectos de coordenação de cabine, CRM, voo manual e/ou semelhantes.
Hospedados no hotel Sofitel, na famosa praia de Copacabana, os tripulantes da Air France tiveram três dias inteiros de descanso no Rio de Janeiro. Pousaram na cidade na tarde do dia 27/05 vindos de Paris. Naturalmente, durante o tempo livre, exploraram o turismo carioca com intensidade. No próprio dia 31, já que o voo 447 seria noturno, acordaram todos bastante cedo para um voo panorâmico em um helicóptero especialmente fretado para isso: era um domingo de sol e temperaturas amenas no Rio. Pierre-Cedric e Marc Dubois haviam trazido da França, respectivamente, sua esposa e sua namorada para os acompanharem nos três dias inativos no Brasil. Quem por ventura os visse em meio aos passeios, muito provavelmente sequer poderia supor que tratava-se de um comandante de uma renomada empresa aérea junto aos seus primeiros-oficiais. Enquanto o helicóptero voava acima das belas praias da cidade com os alegres turistas franceses, 3000km ao norte em meio ao Oceano Atlântico, na ITCZ (Zona de Convergência Intertropical), emergiam formações de grande importância.
Utilizando os serviços meteorológicos disponibilizados pela própria Air France aos seus tripulantes e os computadores disponíveis no próprio hotel, os pilotos escalados para o voo 447 poderiam ter acompanhado com antecedência a evolução das formações na área da ITCZ incluindo a situação a ser encontrada no momento do voo, horas depois. Poderiam, mas não o fizeram.
Vamos entrar agora no cockpit do Airbus A330. A imagem abaixo mostra o plano de voo previsto para o voo 447. Noite de céu estrelado na Ilha do Governador (METAR do dia 31/05/2009 no horário da decolagem: SBGL 312200Z 06004KT CAVOK 28/18 Q1009=)
Era prevista uma decolagem da pista da 10, mantendo inicialmente 5.000 pés até o bloqueio do VOR de Porto das Caixas, com curva à esquerda e ascensão ao nível de cruzeiro após este bloqueio, aproando o waypoint AWAKE, que balizara a aerovia UZ10. Nesta aerovia, em contato com o ACC Brasília, voaria até a posição FLIRT no FL350, onde estabeleceria então contato com o ACC Recife. Após o bloqueio do VOR de Natal, iniciaria enfim a travessia oceânica pela aerovia UN873 onde, na posição INTOL, estabeleceria contato com o ACC Atlântico (por meio de CPDLC - que naquele voo apresentou uma falha de login para a comunicação via texto, ou por voz, meio efetivamente utilizado pela tripulação do AF447, por meio de frequência HF).
Por HF, o Air France reportou ao ACC Atlântico o bloqueio da posição INTOL às 01h32 Zulu (22h32 BR) e estimava o bloqueio do waypoint TASIL às 02h23 Zulu (23h23 BR). A distância entre as duas posições é de 245 milhas náuticas, ou seja, o estimado era totalmente condizente com a velocidade empregada de Mach 0.82 para o voo. A imagem abaixo da High Enroute Chart H-4, da época do acidente, indica estas posições e a localização destas em meio ao globo.
A Zona de Convergência Intertropical possui características específicas e muito peculiares e portanto, em determinadas épocas do ano, faz-se necessária uma análise criteriosa da meteorologia para voos que cruzem o Atlântico oriundos de toda a América do Sul em direção à Europa. No dia do acidente uma região de fortes ventos alísios cobria a maior parte do Atlântico Norte e também uma área importante do Atlântico Sul (divididos pelo Equador, cabe ressaltar) e isto manteve a ITCZ numa posição um pouco mais a sul do que o usual. Estas condições atmosféricas instáveis combinadas produziam, portanto, aglomerados dispersos de tempestades.
A partir do briefing meteorológico entregue ainda em solo no Rio de Janeiro a tripulação do AF447 sabia das formações a serem encontradas no início da travessia oceânica - e, inclusive, discutiram entre si as melhores ações a serem tomadas para não terem de encará-las.
Observe a imagem realçada abaixo, obtida pelo satélite GOES na hora exata do acidente. A rota do voo está "plotada" na imagem para facilitar a orientação. O AF447 provavelmente encontrou turbulência entre 01h50 Zulu (22h50 BR) e 01h59 Zulu (22h59 BR) e isso foi discutido pela tripulação a partir da marca azul na imagem (01h59 Zulu - Evento 2 - 22h59 BR). Foi feito um speech aos comissários dando conta da instabilidade, os avisos de atar cintos foram ligados e, no cockpit, era observada a aparição de Fogo de Santelmo - o que despertou a atenção de Pierre-Cedric Bonin. O próprio Fogo de Santelmo e o aumento da temperatura na região denotavam a forte atividade meteorológica. Note que a correção de proa (às 02h08 Zulu - Evento 3 - 23h08BR) ocorreu dentro de uma área central do complexo de tempestades, o que indica que o radar meteorológico não mostrava aos pilotos as reais condições a serem encontradas, por conta do ajuste adotado àquele momento (possivelmente em modo de ganho calibrado). Como resultado pode-se presumir que as formações seguintes - e desconhecidas - continham precipitação moderada a forte com turbulência de intensidade severa.
A imagem acima foi obtida pelo mesmo satélite, porém, não é realçada. Estas formações, em voo noturno transoceânico e em falta de atividade elétrica, são praticamente invisíveis - por isso a importância do radar meteorológico e da antecipação pessoal por parte da tripulação é tão importante e tão questionada até então.
A projeção abaixo que consta no relatório final do BEA (Bureau d'Enquêtes et d'Analyses, órgão francês de investigação) mostra que além da deficiente análise do cenário meteorológico por fatores que vão desde a característica das formações à atuação da tripulação qualquer desvio àquela altura seria inútil. Observe na imagem a trajetória da aeronave e seu nível de voo em comparação à área indicada na imagem do satélite GOES.
O AF447, sua tripulação e seus passageiros atravessaram uma área de chuvas tropicais e tempestades, correntes ascendentes moderadas/fortes e uma alta probabilidade de turbulência, que variou entre as intensidades leve e severa em curtos espaços de tempo - ou seja, da efetiva penetração na célula ao impacto na água. O voo penetrou em uma primeira célula por volta de 01h50 Zulu (22h50 BR) e em um aglomerado de células embutidas a partir de 01h58 Zulu (22h58 BR). A área de células mais fortes foi penetrada às 02h08 Zulu (23h08 BR), logo quando, em relação ao eixo da aerovia, a rota foi desviada em 12 graus. Imediatamente após, outra célula foi penetrada às 02h10 Zulu (23h10 BR), horário exato do momento da desconexão do piloto automático e início da sucessão de eventos que culminaram no acidente. Suspeitava-se, segundo o relatório do BEA, que o voo estivesse dentro de áreas de chuva e precipitação até o momento do impacto, com ocorrência de gelo liso nas superfícies aerodinâmicas abaixo do FL250 com temperaturas entre -10º a -20ºC. Cabe ressaltar a incerteza da contribuição do acumulo de gelo na recuperação da aeronave do estol, visto que entrada na atitude anormal de voo teve inicio ainda no FL370 após a desconexão do piloto automático, e também devido ao curto tempo até o impacto na água (menos de dois minutos entre o FL250 e a superfície).
A turbulência, a desconexão do piloto automático, a entrada em atitude anormal e possivelmente o congelamento de superfícies de comando acabaram por criar um problema inicial, que culminou em um "efeito dominó" junto aos demais fatores contribuintes não abordados neste artigo.
O estudo para um voo começa a partir do momento em que, além da manutenção dos conhecimentos acerca da operação da máquina, dedicamos nossa concentração e tempo para entender os cenários que eventualmente serão encontrados. Parece complexo desenhar estes cenários porém com simples perguntas (qual o tipo da aeronave? o aeroporto possui restrições? como está a meteorologia na rota? a operação é restrita? como é a rota do início ao fim? quais são as altitudes mínimas para os setores X, Y ou Z?....) eles podem ser construídos com razoável precisão.
Se o seu voo inclui uma tripulação múltipla, você possui uma chance valiosa que foi deixada de lado pela tripulação do AF447 e por tantas outras até os dias de hoje. Que tal, antes de sair para o aeroporto, conversar informalmente com seus colegas para delinearem e entenderem o cenário que encontrarão ao longo do dia? Mais do que isso: por que não ouvir sua tripulação de cabine e agregar, a partir da contribuição destes, suas ponderações e sugestões à operação, quando pertinentes, a fim de tornar o voo ainda mais blindada aos fatores externos?
A magia acontece quando o "small talk" torna-se, além de um saudável quebra-gelo entre membros de uma equipe, um fator multiplicador de conhecimento.
Voos seguros para todos nós!