Relevância jornalística e o sucesso das palavras cruzadas do NYT
Outro dia postei que boa parte dos 5 milhões de assinantes digitais celebrados recentemente pelo New York Times, na verdade, só assina palavra cruzada ou conteúdo de gastronomia. Como a minha preocupação sempre foi mais com a relevância do conteúdo antes do modelo de negócio, o querido Eduardo Acquarone deixou o seguinte comentário:
Os produto jornalísticos tradicionais sempre foram muito além da "relevância da notícia" -- de palavras cruzadas aos quadrinhos, dos classificados ao serviço de horários de sessão de cinema. Cada um desses itens foi, aos poucos, agregando público, que, pelo menos na teoria, alguma hora chegariam às notícias.*
Quantos não começaram a ler jornais pelos cadernos de esporte e, mais velhos, pularam pra partes mais "nobres".
O que o digital busca é recriar esse público consumidor -- de quadrinhos, palavras cruzadas e, sim, de notícias! :-)
* grifo meu
Eis que me deparo com um texto de Luka Brajnovic, de 1976, publicado em um caderno da Universidade de Navarra, onde ele fala sobre o Jornalismo "Schund". O termo vem do alemão e significa "escória", "inútil" ou, no contexto editorial, aquilo que atenderia as necessidades pré-culturais ou subculturais do ser humano.
A visão é um tanto Moderna e Positivista ao classificar o ócio e a diversão como algo frontalmente oposto às necessidades autenticamente culturais. Na Pós-Modernidade essa dicotomia foi exageradamente superada, ao propôr que trabalho e lazer, produtividade e relaxamento deveriam significar praticamente a mesma coisa.
O pêndulo foi pro outro extremo e migramos, subitamente, de páginas cinzas de texto a vídeos non-sense no YouTube. Até que ponto as teses de Domênico De Masi e de Michel Maffesoli, quanto à importância do ócio e do hedonismo à evolução e ao bem estar da humanidade não foram burramente distorcidas para justificar a bestialidade?
Enquanto TikTokers me dão vergonha alheia, há quem tenha se traumatizado pela multiplicação de "conteúdos" no estilo "Schund". A própria indústria jornalística desenvolveu aversão àquilo que chama "interesse DO público" - balaio de preconceitos sobre uma audiência que "só gosta de sangue, suor e sexo", ou das concorridas editorias de Polícia, Esporte e Celebridades.
Isca
O mais inquietante é quando Brajnovic fala que o jornalismo usa o Schund para atrair as audiências para um primeiro contato, com o objetivo tácito de "elevar" seus interesses ao nobre mundo das notícias sérias (#ironia). No fundo é um pouco daquilo que o Edu Acquarone dizia. O Brajnovic explica:
"[Existe] uma obscura interpretação do ócio e da diversão que leva a afirmar que os 'consumidores' do Schund passam, com o tempo, a compreender os valores autênticos da cultura e que eles só voltam à imprensa sensacionalista ou aos programas baratos (não me refiro ao seu preço) e artisticamente superficiais ou duvidosos nos momentos de tensão, ainda que, então, já estejam imunes - dizem - ao veneno, porque possuem uma suficiente dose de 'tolerância superior', etc, etc, etc. Evidentemente se trata de justificativas que - como norma - não têm nada a ver com a realidade. O que prejudica é prejudicial e se pode remediar somente através da cura daquele que está doente e salvando o que parece ou está perdido."
Não, palavras-cruzadas não é o mesmo que sensacionalismo; gastronomia não é Schund. Mas se o Edu estiver certo, o NYT está fazendo a mesma coisa que os praticantes do jornalismo Schund e quer atrair ao core do veículo quem hoje assina Sudoku.
Em busca da relevância perdida
Na minha visão, não é assim que a coisa funciona. O interesse pelo noticiário, tal como ele existe há 400 anos, não tem como ser despertado através de passatempos ou receitas de bolo. Quem consome estes produtos é porque realmente gosta e quer consumi-los - ponto. Que o façam dentro de um produto cujo foco central é o hard news e que talvez, um dia, se interessem por jornalismo tradicional, aí é que eu esperaria sentada. Porque neste cenário o jornalismo segue intocável. Não se discute relevância de informação nem critério de noticiabilidade. Não se veste os óculos da audiência para ver o mundo com a variedade de ofertas infinitas de informações muito mais atraentes, divertidas e - até mesmo - úteis, que não estão nos veículos de imprensa.
Os resultados do NYT podem (e devem) seguir crescentes; mas se a estratégia for esta, o crescimento não se sustenta no médio-longo prazo. A menos que o objetivo deles seja abraçar a indústria do entretenimento. Se a intenção ainda for fazer jornalismo como um serviço à humanidade, para auxiliar o indivíduo a estar-no-mundo e a viver melhor, então o debate tem que acontecer dentro de casa e não lá fora, quando a preocupação for gerar receita.
Mudança de hábitos?
Voltando ao comentário do Edu, ele diz que muitos começaram a ler jornal somente pelas notícias de esportes e, mais velhos, pularam para o hard news... Hoje de manhã li que mais da metade (66%) dos jovens da geração Z tende a ler as notícias de forma "rápida e superficial". Vale mencionar que 85% deles não aceita pagar por conteúdo editorial.
Daí vale a gente se perguntar: quando este jovem crescer e tiver lá seus 40, 45 anos, ele realmente vai mudar seus hábitos de consumo de informação, ficando parecidos a como a geração X (seus pais) consome notícias?
Tendo a achar que não e, juro, a razão disso não está na mera inércia. Mas no tipo de formação, de educação que esse grupo teve e tem na atualidade. São indivíduos que crescem em meio a um sistema de valores completamente diferente daquele em que as gerações Y e X foram educadas. Não cabe julgá-los agora. Mas é urgente reconhecer que, entre estas gerações, há uma diferença brutal nos modos de vida e de olhar pra vida, na forma como cada indivíduo se relaciona com a informação.
Aceitemos: o mundo não voltará a ser como era e nem ao se tornarem adultos estes jovens consumirão notícia como se consumia nos anos 80. A sobrevivência [a.k.a. relevância] do jornalismo precisa vir de fora, do olhar macro à sociedade. E não de discussões estéreis e restritas a modelos de negócio.
Especialista em Políticas Públicas. Consultor de Comunicação. Gestor. Jornalista.
4 aFaltam dados públicos pra saber quanto realmente de conversão das cruzadas pras notícias. Temo que esses dados provariam que a desculpa dos veículos é balela. Sobretudo em época que o clique vale mais que a credibilidade.
Jornalista | Comunicóloga | Especialista em comunicação empresarial | Pós-graduanda em neurocomunicação | Palestrante | Consultora | Mentora
4 aMuito bom, Ana Brambilla. Concordo com o seu ponto de vista. Transportar a estratégia dos anos 80 para hj é pífia (já o era) e na verdade as facilidades de conteúdos rasos ou pitorescos pelas plataformas mobile na atualidade nem justificaria a procura por estes conteúdos dentro de canais jornalísticos, muito menos que pudessem fisgar públicos em quaisquer outras plataformas de entretenimento tosco.
Jornalista, Doutora em Comunicação Digital. Consultora de Veículos de Mídia e Mentora em Jornalismo.
4 aPronto, pode vir pro round Eduardo Acquarone! ;-D