Respire

Respire

Enredos de filmes e séries inspirados na emblemática estrutura campbelliana da “Jornada do herói” adaptada para a “Jornada da heroína” estão cada vez mais comuns. Atualmente, temos diversas heroínas no mundo da ficção: Mulher Maravilha, Capitã Marvel, Hermione, Lisbeth Salander, Mulan, Matilda, Katniss, Princesa Leia, Lara Croft, Viúva Negra, Xena, Buffy, Alias, Sarah Connor, Jessica Jones, Verônica e mais outras, todas provando que a mulherada está em alta nas séries, nos filmes e nos romances, uma tendência que não será modinha, porque veio para ficar. Afinal, as mulheres estão empoderadas (é bom que continuem!) e querem se ver nas telonas, nas telinhas e nas páginas dos livros.

E, obviamente, homens também gostam de ver personagens femininos bem construídos.

É o que podemos observar na nova série chamada Respire (Keep Breathing), o mais novo sucesso da Netflix, que estreou no catálogo na última semana e já está entre as produções mais assistidas da plataforma. Com apenas seis episódios, cada um com menos de 40 minutos, é o tipo de material rápido que muita gente adora maratonar. Entretanto, nem todo mundo entendeu a proposta da série e teve gente que acabou decepcionada, por foi em busca de um uma história de suspense e acabou tendo que lidar com questões psicológicas, senão existencialistas. 

O enredo gira em torno de Liv, uma advogada workaholic, que passa por uma queda de avião no meio de uma inóspita floresta canadense.Depois vamos descobrir, a partir de inúmeros (às vezes demasiados!) flashbacks, que Liv, além de ser uma advogada viciada em trabalho de Nova York, tem que lidar com os próprios demônios. Respire mostra que a jovem precisa enfrentar os desafios provocados pelo acidente aéreo: a luta pela sobrevivência em um local hostil e estranho e a peleja para apaziguar os dilemas causados pela sua história.

Sabemos que toda história é a narrativa de como um personagem tenta resolver um problema. Toda história, a rigor, só existe por causa disso, porque temos protagonista com problemas. Para Campbell, famoso mitólogo americano, o herói precisa sempre lutar contra dois dilemas, um interno e outro externo.

Para Christopher Vogler, no seu “A jornada do escritor”, é a resolução de um que proporciona condições para a solução do outro. Mas, qual primeiro? Não há primeiro. Há durante.

É o que vemos em Respire.

Ao longo dos episódios, a jornada de Liv consiste em confrontar seus demônios interiores e os seus, inúmeros, obstáculos exteriores. Vamos descobrir que a protagonista Liv Rivera (Melissa Barrera) enfrenta questões antigas com a mãe, problemas de relacionamento com o pai e tem um namorado que ela faz de tudo para distanciar. Por sua vez, a sinopse da minissérie diz: “Nesta série cheia de suspense, uma mulher luta para se manter viva após seu avião cair num local remoto”, mas essa é só uma das dificuldades encaradas por Liv.

Outro elemento Campbelliano que vemos no enredo é a presença, quase constante, do mentor, no caso, dos mentores. Há sempre mentores, personagens que aparecem para nortear a heroína. Entretanto, nem sempre esses mentores dão os melhores conselhos. Nem sempre servem para motivá-la nem para apresentar soluções. Portanto, aqui temos o “mentor não-confiável” em vez de “narrador não-confiável”.

Liv é também uma espécie de MacGyver atrapalhada, porque nem todas as suas tentativas de criar soluções para sobreviver são exitosas, o que faz da personagem ainda mais convincente.

Há, não obstante, quem acuse a série de ser uma longa sessão de psicanálise vendida como uma série de ação. E, por isso, pode ser uma decepção para os aficionados pela categoria.

Mas gosto é mesmo coisa pessoal.

A meu ver, é exatamente essa mistura explícita de dilemas existenciais que faz a série ser diferente. Afinal, pouco a pouco, vamos descobrindo os motivos pelos quais a protagonista é quem ela é. Porque evita a intimidade. Porque trabalha tanto. Porque é tão solitária. Porque tem suas inseguranças. Porque não se permite desistir. E são essas essências que a empurram para as decisões que acaba tomando. Afinal, como acontece com todos nós, essências geram estâncias.

Liv uma personagem empática. Ela é falha, incompreensível, incoerente e egoísta. Mas também é persistente, ousada, corajosa, inventiva e lutadora. Em outras palavras, é complexa. Exatamente como todos nós somos.

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