Resposta ao Globo - Temos de ter cuidado com as falácias
Malu Gaspar, jornalista competentíssima, escreveu hoje um texto no Globo, na esteira da atual polêmica entre Brasil e Israel, em que sintetiza o que seriam dois problemas e uma dúvida sobre os efeitos do que chama de "doutrina Amorim" para a política externa brasileira. Apesar de claro e linear, o que lhe confere grande credibilidade, porque muito bem escrito, o texto apresenta dois problemas cruciais: um de forma e outro de conteúdo.
O de forma, mais simples, mas não menos importante, é que não deixa claro se as conclusões que sintetiza são do jornal ou do acadêmico citado, Mathias Spektor, cuja descrição sobre o que chamou de "doutrina Amorim" é apresentada imediatamente antes do que a jornalista chama de "problemas e dúvida". Ficamos sem saber se a jornalista concluiu esses pontos a partir da reflexão do acadêmico, ou se esses pontos são a posição do acadêmico. Interpreto na primeira chave, mas mesmo depois de reler o texto, não consegui bater o martelo em uma resposta. Dessa forma, não sei a quem endereçar a crítica sobre o conteúdo que explico a seguir. Assumindo que a leitura de Spektor esteja correta - não escrevo este texto em nome de Amorim ou Lula, tampouco do ministério para o qual orgulhosamente trabalho-, há problemas de lógica e de compreensão da diplomacia brasileira nas conclusões que se seguem naquele texto.
O primeiro "problema da doutrina" a que se refere o texto é uma forçada na barra da inferência lógica - um estilingada - bastante perigosa: assume que criticar elementos da atual distribuição de poder global é dar aval tácito a líderes como Putin ou Maduro para perseguir e matar opositores e censurar a imprensa. Com base em que se pode afirmar isso? Em nenhum momento o Brasil deu aval tácito a esse tipo de ação a esses e a nenhum outro líder. Nesse sentido, esse primeiro problema é uma abdução equivocada apresentada como uma dedução matemática, argumento comumente conhecido como falácia lógica. Não há premissa que leve a essa conclusão. Esse problema, em suma, não existe senão em um cardápio da crítica pela crítica.
Recomendados pelo LinkedIn
O segundo "problema da doutrina" seria que as posições defendidas por Lula e Amorim são defesas de aliados econômicos e ideológicos e não de princípios universais. Em primeiro lugar, um Estado soberano definir suas posições em função de suas alianças não apenas é legítimo como é o mais comum. Poucos são os países que defendem verdadeiramente princípios universais na arena internacional. Em segundo lugar, e o que mais surpreende no argumento daquele texto, é que o Brasil é exatamente um desses países - dos que defendem princípios universais na arena internacional. Usar o nobre e limitado espaço na arena internacional para expressar posição contrária ao genocídio é, antes de tudo, estar alinhado com princípios universais. Em termos pragmáticos, seria muito mais fácil não se posicionar e manter uma neutralidade silenciosa.
Nesse sentido, vamos ao terceiro problema do texto, que é sobre a dúvida em relação ao custo real da estratégia que chama de "doutrina Amorim". Apesar de reconhecer que tal estratégia poderia gerar os frutos desejados no futuro, o texto cobra alguma celeridade e, com isso, deixa de reconhecer que os processos internacionais podem ser e, na maioria das vezes, são lentos. Ora, a estratégia do Brasil deveria ter, diferentemente de todas as outras, resultados no curtíssimo prazo.
Por fim, é muito difícil avaliar o que está ocorrendo como um constrangimento diplomático para o Brasil. É uma polêmica? Claro, pois envolve posições antagônicas. É um constrangimento? Apenas se o objetivo de nossa política externa fosse ser a mais anódina possível. Eu estaria muito mais constrangido se trabalhasse para uma chancelaria que olhasse o genocídio e achasse normal sentar-se para tomar um chá da tarde e comer brioches, como se nada estivesse acontecendo.