Retrato de um repórter quando jovem

Retrato de um repórter quando jovem

Ao me aproximar do entrevistado, percebi que ele se arrumara especialmente para a entrevista.

Camisa branca, bem passada. Cabelos penteados com pente de cerdas finas. Havia feito a barba naquela manhã. Estava muito cheiroso. Me aguardava na recepção do jornal com um sorriso ingênuo. Foi impossível não sorrir de volta. Assim começou a apuração da matéria que mais me marcou, nestes três anos de reportagem.

André, 33 anos, é portador de uma doença degenerativa que o mantém sentado sobre uma cadeira de rodas. Neste dia, eu chorei duas vezes. Uma, pela história de vida do rapaz. Outra, por não ter conseguido levá-lo para conhecer o jornal por dentro – um degrauzinho de 20 centímetros impediu que conseguíssemos levá-lo para o interior da empresa. Senti vergonha por isso.

Registrei esta data porque foi a primeira vez que olhei meu reflexo no espelho e me senti grata por, cinco anos atrás, ter escolhido jornalismo como minha primeira opção no vestibular. Desde então, eu havia me decepcionado com o curso. Achava utópica a ideia de ser "imparcial" e odiava como os professores falavam sobre isso com naturalidade. Tinha raiva de treinar caras, bocas e olharem de frente para câmera da televisão, mas não treinava sobre como me virar no desemprego. Me tornei uma universitária rebelde e havia lamentado para todos os ventos o baixo piso salarial.

Ao me despedir de André, tratei de não calar aquela desconfiança que, de quando em quando, falava baixinho no meu ouvido: talvez jornalismo não seja tão ruim. Talvez a reportagem seja uma estratégia para dar voz aos que não tem. Talvez eu possa fazer muito como repórter. Talvez eu me divirta muito como jornalista. Talvez eu mude alguma coisa com a minha profissão.

Aos 18 anos, preenchi o quadradinho ao lado da palavra “jornalismo”, no ato da inscrição do vestibular. Mas eu não fazia a mínima ideia do que era ser jornalista – e acho que os vários estudantes que rabiscam o mesmo quadradinho, ano após ano, também não fazem. Ser jornalista é um mistério; cada um encontra um tesouro diferente. Não é objetivo como ser advogado, médico ou sacerdote. Ser jornalista é ser os entrevistados, as fontes e os adjetivos. É ser literatura, denúncia e relato. É encontrar seus Andrés e, com emoção, transformá-los em palavras, vírgulas e orações.

É engraçado que, como jornalistas, somos convidados a conhecer a intimidade perturbadora dos outros. Daqueles que, se não fosse pela nossa profissão, seriam apenas mais um rosto na rua. Figurantes que passam pela gente enquanto caminhamos pela calçada. Figurantes na nossa vida, e às vezes figurantes da própria vida, pois seus problemas são os protagonistas.

Hoje, com quatro livros lançados, concluo que a minha melhor forma de relatar o mundo é através de uma literatura que melhoro a cada dia, a cada André, a cada passo mais perto da naturalidade em ser um repórter cansado com um crachá balançando na barriga.

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