A REVOGAÇÃO DE INCENTIVOS FISCAIS DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO DE SÃO PAULO, A REGULAÇÃO DE PREÇOS E A CRISE DE SAÚDE
Aline Coelho é advogada responsável pelo setor Farmacêutico e de Cuidados com a Saúde do Barbosa, Raimundo, Gontijo e Câmara Advogados.
Pedro de Mello Martins Teixeira é advogado sênior da área de consultoria e planejamento tributário do Barbosa, Raimundo, Gontijo e Câmara Advogados.
O mundo vive um dos maiores desafios de sua história, que é vencer a crise sanitária, social e econômica oriunda da pandemia causada pela disseminação do vírus Sars-CoV-2, da família coronavírus, causador da Covid-19. No cenário brasileiro, tal desafio se mostra ainda maior por todas as peculiaridades logísticas, burocráticas e políticas de nosso cenário interno.
Tendo um cenário complexo e trágico como pano de fundo, o Governo do Estado de São Paulo publicou, em outubro de 2020, dentre outros atos normativos, os Decretos nº 65.254 e 65.255, que tem como objetivo a implementação do que foi chamado de “pacote de ajuste fiscal”.
Nesse pacote, foram implementadas diversas medidas visando o incremento da arrecadação estadual, dentre elas podemos citar a restrição à vigência dos incentivos fiscais relacionados no Decreto nº 65.254, e a revogação de outros incentivos por meio do Decreto nº 65.255.
Cabe apenas ressaltar que tais incentivos fiscais têm amparo em diferentes Convênios ICMS, dentre eles os Convênios nº 10/2002, 73/2010, 162/91, 01/99 e 140/2001, os quais foram adotados por diversas unidades federadas, por meio da alteração das respectivas legislações internas, considerando a relevância e o impacto social do tema.
Esses incentivos observaram todos os requisitos legais e o procedimento próprio para a implementação de benefícios fiscais no âmbito estadual, uma vez que foram aprovados à unanimidade pelo CONFAZ, por meio de representantes das Secretarias de Fazenda de todos os estados da federação. Assim, importante se faz considerar que neste artigo não estamos diante de benefícios fiscais concedidos de maneira unilateral por entes da federação, os quais são objeto da conhecida “guerra fiscal”.
Na prática, dentre outras medidas, foram revogadas diversas isenções concedidas para medicamentos indicados para tratamentos contra uma série de doenças dentre elas a AIDS e o câncer, estes últimos com fortes impactos, inclusive, no ambiente hospitalar. Ou seja, para alguns medicamentos o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e a Prestação de Serviços de Comunicação e de Transporte (“ICMS”) era isento, não incluído no Preço Fábrica do medicamento, e passou a ser tributado à alíquota geral de 18%.
Ainda que indústria farmacêutica no Brasil não fosse altamente regulada, tal medida já seria questionável por ocasionar um relevante incremento de preço dos produtos em meio a uma crise sanitária, social e econômica sem precedentes, mas em um mercado com preços altamente regulados, tais impactos podem ser ainda mais severos.
Isso porque, de forma geral, o ICMS é um tributo de natureza indireta, e, portanto, é repassado ao adquirente daquele determinado produto por meio de sua inclusão no preço de venda. Em última instância, o aumento de carga tributária relacionada ao ICMS resulta em um aumento do preço pago pelo consumidor final, adquirente desse produto.
Ocorre que no setor farmacêutico, o preço de venda praticado tanto pelo laboratório quanto pelos demais vendedores desses produtos é estabelecido por agentes reguladores, nesse caso, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (“CMED”) por meio da divulgação de uma tabela de preços.
Os preços constantes de tal tabela decorrem de pedido de preço apresentado pelos laboratórios, e são fixados pela CMED já considerando, a alíquota aplicável de ICMS e a carga tributária incidente para fins das contribuições sociais ao PIS e à COFINS.
Assim, para os medicamentos que tiveram seus preços aprovados e fixados pela CMED, foram consideradas as isenções de ICMS decorrentes dos Convênios ICMS anteriormente descritos, alguns deles concedidos há mais de 20 (vinte) anos. Portanto, o único preço de venda permitido para aquele medicamento em território nacional não abarcou o ICMS, que agora deverá incidir sobre essas vendas.
Isto significa que o incremento de 18% da carga tributária dessas operações, que resulta na majoração da alíquota do ICMS nessas transações, deverá ser suportado pelo vendedor, já que por motivos regulatórios, não é possível realizar o incremento desse preço e, consequentemente, repassar esse custo ao consumidor final.
Ocorre que, caso não seja possível suportar o aumento do custo nessas proporções, será inviável a pessoa jurídica vendedora comercializar seus produtos no Estado de São Paulo até que um novo preço seja fixado pela CMED, contemplando a alíquota de ICMS de 18% especificamente para aquele Estado. Assim, até que esse gargalo regulatório seja resolvido, ou o vendedor fornecerá seus produtos com prejuízo, ou não fará a venda, o que poderá, em hipótese mais extrema, gerar um desabastecimento de determinados medicamentos no Estado de São Paulo.
Cabe ressaltar ainda, que após a adequação regulatória quanto aos preços, haverá um outro problema que será gerado por tal medida, o incremento de preço em até 18% dos medicamentos impactados, sendo muitos deles relacionados ao tratamento de doenças graves. Significa dizer que, em meio a uma grave crise sanitária, social e econômica, produtos essenciais à saúde de diversos cidadãos paulistas passarão a custar mais caro.
Não se pode olvidar que o Direito à Saúde, constitucionalmente previsto, é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantido por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos, cabendo ao Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. A saúde é, portanto, bem jurídico indissociável do direito à vida e o Estado tem o dever de tutelá-la.
Diante de tal contexto, uma medida de aumento de carga tributária, que teve como objetivo apenas aumentar a arrecadação do Estado de São Paulo, pode reforçar o agravamento da crise de saúde pública, na medida em que restringe ainda mais o poder de compra dos cidadãos paulistas e seu acesso a medicamentos de suma importância para sua vida e bem estar.