Ruptura, dor, crescimento
Trazendo por aqui os textos da newsletter que venho publicando no Substack.
Abaixo está a primeira news que enviei por lá.
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Ruptura causa dor. É um fenômeno negativo. Ninguém fica tranquilo ao romper um tendão, um relacionamento, ter cancelada aquela série preferida. Em contraponto, há uma positividade que a evita, impregnada em nossa sociedade, estimulada pela psicologia positiva e pela cultura do desempenho, como argumenta o filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, em seu livro Sociedade paliativa (2021).
Entre a alta sociedade francesa do século XVII, estava na moda um movimento chamado sans adieu (sem adeus), que consistia no hábito de se ir embora das festas e reuniões sem se despedir. Durante muito tempo foi considerado muito mais elegante partir às escondidas do que sair se despedindo de todo mundo. Daí vem a expressão “sair à francesa”. O hábito oposto, que temos hoje, chegou, naquele tempo, a ser considerado ofensivo e uma demonstração de pouco controle emocional.
Ao me deparar com esse fato histórico, não pude deixar de associá-lo ao que estava lendo sobre ruptura: que ir embora sem dizer adeus talvez não passe de uma tentativa de evitar a dor que representa o despedir-se, apartar-se do outro, mesmo que momentaneamente. E que, pensando assim, simplesmente partir me parece bem menos desagradável.
Mas a ruptura é o que nos permite acessar o outro: rompemos nossas próprias barreiras, expandimos nosso território consciencial de modo que alcançamos inteiramente o outro. Crescemos em contato com o outro. Sem a dor da ruptura, continuamos ad infinitum em repetições de nós mesmos.
A águia rompe a casca do ovo em direção à luz; nós rompemos a placenta em busca do primeiro sopro de vida; a semente se rompe e dela brota o que virá a ser uma grande gameleira.
Estamos tão dentro de nós mesmos, tão centrados, rodopiando em volta de nosso próprio umbigo que, quando nos vemos diante de uma oportunidade de ruptura, tudo o que queremos é nos justificar para fortalecer ainda mais nossa posição. Queremos fugir da dor e permanecer exatamente onde estamos.
Uma ruptura pode acontecer de incontáveis maneiras, como, por exemplo, quando estamos diante de uma obra de arte.
A arte desempenha um papel importante na capacidade de nos colocar no lugar do outro. Ao expor-nos a obras que nos desafiam e nos fazem questionar nossas próprias perspectivas, podemos alcançar uma compreensão mais profunda da experiência humana.
A arte pode ser uma ferramenta poderosa para nos ajudar a alcançar esse objetivo, desafiando-nos a ver o mundo de novas maneiras, permitindo-nos experimentar a alteridade.
A arte tem de poder causar estranhamento, perturbar, transtornar, sim, também doer. – Byung-Chul Han.
A psicologia positiva (muito popular hoje em dia), apresenta uma tendência para “positividade tóxica”, busca evitar a ruptura e a dor que vem com ela. Está diretamente ligada à lógica do desempenho, que, por sua vez, é alimentada pela ideologia neoliberal, que visa, acima de tudo, a produtividade e o lucro.
Por esse motivo, por estarmos tão imersos nessa realidade, não é um sintoma fácil de se diagnosticar, principalmente em nós mesmos.
Nós, como sociedade ocidental, evitamos a dor a todo custo. Esta torna-se um sinal de fraqueza. Daí que termos como “resiliência” (e outros, que expressam a importância de se manter firme, não importa o motivo), tornaram-se tão populares em forma de tatuagens no antebraço.
A dor deve ser eliminada. Os pensamentos negativos imediatamente substituídos pelos positivos. A resiliência em busca do desempenho, mantida a qualquer custo. Não podemos perder tempo sentindo.
Ouço alguns comentários de pessoas mais velhas (às vezes também encontro pessoas mais novas), da geração de meus pais pra lá, dizerem que os jovens de hoje são frágeis, fracos, etc. Embora eu não concorde com as razões para suas afirmações, não posso deixar de pensar que, se as gerações mais recentes estão mesmo fragilizadas, isso se deve à cultura do desempenho, cada vez mais atrelada à nossa realidade e a nossas vidas. Impregnada nos meios de comunicação, propagada pelas redes sociais, principalmente.
Sei que essa é uma crítica comum, mas pense na razão de quase ninguém postar sobre seu sofrimento nas redes sociais. Isso não atrai seguidores. Não é instagramável.
Ignorar é um exercício de insensibilidade. A dor existe, é inevitável. O que comumente fazemos é empurrá-la para debaixo do tapete. E o que acontece quando estamos a todo momento nos exercitando para nos tornarmos insensíveis à dor? Quando, diante dela, buscamos subterfúgios, passatempos e distrações?
Tornamo-nos insensíveis a todo o resto. Qualquer experiência que exija um pouco mais de sentir em profundidade torna-se insuportável. Não aprendemos a lidar com a dor que já existe e evitamos qualquer contato que ameace provocar algum nível de dor.
Por outro lado, o budismo se apresenta como uma filosofia que nos aproxima da realidade da dor e do sofrimento. Buda ensinou que existem Quatro Nobres Verdades, nas quais todos os seus ensinamentos se baseiam: 1) dukkha: a realidade do sofrimento; 2) samudaya: a realidade da origem do sofrimento; 3) nirodha: a realidade da cessação do sofrimento; e 4) magga: a realidade do caminho para a cessação do sofrimento.
A meu ver, as tradições orientais têm uma noção mais clara da ubiquidade do sofrimento e da dor, de maneira que, como nos mostra o budismo, desenvolveram ferramentas para lidar diretamente com essas realidades. Isso desmistifica o sofrimento e nos traz consciência da nossa condição de humanos.
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Como tudo na vida, só podemos superar uma situação se aceitarmos a sua existência.
É curioso pensar que há anos ensaio criar uma newsletter e nunca o fiz - até agora.
Medo da ruptura, medo do contato com o outro e do outro comigo, medo de crescer. Tudo isso se aplica.
Eu estava preparando um outro texto, algo que introduzisse minha proposta, que justificasse para mim e para os outros os motivos de estar escrevendo e enviando textos à caixa de e-mails das pessoas.
Quando essas reflexões sobre ruptura me surgiram, achei que serviriam para um texto a ser publicado algum dia. Eu sequer as tinha associado à minha própria situação: a ruptura de escrever o texto de inauguração desta newsletter, aceitar a dor de expandir.
Eu não tinha mais para onde correr, tive de lidar com minha própria condição, com algum nível de dor, que, longe de eu conhecê-la completamente, serviu para me apontar um caminho a ser seguido.
A consciência que não é capaz de estremecer é uma consciência coisificada. Ela é incapaz da experiência, pois é “em sua essência a dor na qual o essencialmente ser-outro do ente se desvela diante do habitual”. Também a vida que recusa toda dor é uma vida coisificada. Só o “ser-tocado pelo outro” mantém a vida viva. Caso contrário, ela permanece presa no inferno do igual. - Byung-Chul Han.
Sombras sempre longas, um livro de contos
Em outubro de 2020, enquanto fazia doutorado em Teoria da Literatura, lá em Portugal, publiquei meu primeiro livro, Sombras sempre longas (editora Chiado), uma coletânea de contos, cuja edição foi financiada por uma bolsa cultural que ganhei pela Câmara da cidade do Porto.
Passaram-se pouco mais de dois anos e ainda estou escrevendo o meu próximo livro, um romance, que também é a minha tese de doutorado atual em Escrita Criativa.
Enquanto esse novo livro não sai, te convido a conhecer a minha última publicação e um pouco mais da minha escrita.
Você pode comprá-lo clicando em um dos botões abaixo:
A seguir você pode ter uma noção do que se trata o livro, ao ler o texto de orelha, escrito por Paulo Lannes:
Em 14 contos, o escritor Filipe Henz Alencar desfia os múltiplos significados da palavra exílio. E esta vai muito além daquilo que se denomina a expulsão da pátria. Mais que um movimento geográfico forçado, é o deslocamento de si diante do mundo que se reconhece como seu; é a aniquilação do que se poderia chamar de “conforto do lar”. Em concordância com as múltiplas significações da palavra no dicionário, lembra-se, então, que exílio é também degredo, um lugar que traz grande infelicidade, e, principalmente, a solidão que se vive. Assim, nessas curtas narrativas, os personagens parecem se sentir sempre sozinhos, desconectados não de suas realidades, mas dos outros e daquele bem-estar que se faz tão necessário para que a vida siga adiante. Sombras sempre longas, conto que dá título ao livro, traz uma narrativa em que um casal se vê impelido a escapar do vilarejo destruído pelo fogo. Não se sabe o que provocou o incêndio, nem para onde vão – isso não importa. O que se evidencia ali é a percepção que a mulher tinha desde antes do desastre sobre a necessidade de ir embora do local em que se encontra e, ao mesmo tempo, o desalento do homem pela sua nova condição. São esses incômodos, combinados e motivados de diferentes formas, que parecem manobrar as ações (ou a falta delas) de muitos dos personagens que povoam os contos aqui presentes. A memória interrompe o cotidiano em Surpresa!. A esperança dos que ficam se converte em angustiante espera em Promessa. A saudade chega às raias do fantástico em Reencontro. A caminhada serve de reflexão em Antes da tempestade. A perda do filho torna o casal estranho a si mesmo em O quarto. A perda do animal de estimação também coloca a tutora em um lugar estranho em Depois da rodovia. A amizade entre dois homens que não acaba pela distância é posta em xeque pela morte de um deles em Amigo distante. Mas nem só de questionamentos humanos são feitos os textos de Filipe. Negócio gastronômico e Conterrâneos têm como protagonistas homens que, enfim, alcançaram o objetivo: autoexilar-se. Porém, são obrigados a lidar com a realidade de serem imigrantes. Ingenuidade e escrúpulos não terão vez aqui. Velhos amigos revela como que as novas comunicações não garantem a empatia, muito menos qualquer sentido de companhia e afago à dura realidade de que estamos sozinhos diante de nossos próprios atos. Esse sentimento se prolonga em O hóspede, no qual um homem se vê perturbado pelo desejo de garantir a continuidade de sua linhagem. Por fim, Deliberada fortuna, o conto mais extenso do livro, que foi dividido em duas partes, afirma a possibilidade do contato entre pessoas de duas línguas tão diferentes, ao mostrar – numa das passagens mais belas deste livro – o protagonista compreendendo toda a trajetória de dor do imigrante de fala incompreensível apenas pela sinfonia de suas palavras. É como se o som – a música, ou a arte, em suma – pudesse criar uma ponte entre eles e que, na certeza dessa compreensão tão pouco racional, valesse a pena estar ali contando (e ouvindo) essa história de vida. E, afinal, não merece toda grande narrativa de dor ser contada e registrada, por mais estranha que ela nos pareça? Filipe alcançou esse lugar. Ele deve ser lido.
Agradeço a você que chegou até aqui.
Grande abraço!
Gestor de Projetos em Saúde e Inovação | Doutora e Mestre em Saúde | Gerente de Projetos em Saúde Pública e Corporativa e Bem-Estar | Coordenador de Programas de Saúde Corporativa | Gestor de Projetos Estratégicos
3 mParabéns pela explanação sobre ruptura!!! Gostei muito das analogias.