A síndrome de Chicó.

A síndrome de Chicó.

Chicó é um personagem do Auto da Compadecida, obra de Ariano Suassuna. Um simpático sertanejo pouco instruído, bem humorado e um pouco medroso. Chicó tem um bordão que usa para justificar toda encrenca na qual se mete e não sabe o que responder:

“Não sei, hómi. Só sei que foi assim.”

Como fãs da obra literária-cinematográfica, criamos a “Síndrome de Chicó” uma denominação usada quando determinada empresa possui uma convicção muita grande, nem sempre comprovada, sobre algo em seu modelo de negócio. E que não sabe responder exatamente porque.

Todos somos apaixonados e acreditamos muito no que fazemos, imagino que esse seja o segredo para tentar fazer qualquer negócio dar certo. Mas, é preciso tomar cuidado para que certas convicções pessoais não interfiram negativamente em seus negócios. É imprescindível acreditar na própria intuição, mas por vezes, informações, dados e pesquisas de mercado mostram que nossas convicções pessoais podem estar equivocadas. É necessário saber separar o que eu acredito que o consumidor quer (na maior parte das vezes, baseado no que eu consumo), do que o consumidor realmente quer.

Vamos começar por um exemplo hipotético:

Você é um sommelier de cerveja, que aprecia com cuidado cada tipo e sabe harmonizar com os diferentes sabores da gastronomia. Sabe a história de cada tipo de Ale e entende como são produzidas. E acredita que assim como você, existe um enorme mercado que pense o mesmo. E decide abrir uma confraria de cervejas artesanais focado exclusivamente nas importadas, partindo num valor mensal de R$200 para receber algumas cervejas em casa. Você faz idéia de quanto custa uma boa cerveja importada, agrega conveniência, possui conhecimento do produto… Por que não?

Arrisca e… não deslancha. Mas como? Crise? Você tem certeza por toda experiência com o produto e pelo seu próprio consumo que havia uma demanda do mercado. 

Porém, fazendo uma investigação mais a fundo, encontra uma pesquisa realizada pela Unicamp para definir o perfil do consumidor de cervejas artesanais no Brasil que mostra que apenas 20,2 % dos que as consomem este tipo de produto fazem parte de algum tipo de clube relacionado às cervejas especiais. 56.8% não apresentam preferência entre nacionais e importadas e a média de gasto mensal com cerveja artesanal é de R$100,00. Informações simples, que ajudariam a moldar pequenos detalhes que poderiam ter mudado o rumo do negócio.

Outro caso interessante é que de um tempo para cá, assim como o Chicó usava seu bordão para justificar todas suas intempéries, muitos empresários e empreendedores também encontraram um bode expiatório para todos os seus revezes: “É a crise!” Se tornou o “não sei, hómi. Só sei que foi assim” dos negócios neste ano.

Antes de tudo, é importante pontuar que sim, a crise impactou profundamente a economia do país e o desempenho de diversas áreas negócios. Entretanto, existem negócios que encontraram nela uma justificativa fácil para acalmar as próprias expectativas e convencer a si mesmos que a culpa não é deles.

Um exemplo óbvio: locadoras de vídeo. Conversei há pouco tempo com o proprietário de uma locadora aqui do bairro que comentou: “o movimento aqui está baixo. É a crise. As pessoas param de alugar filmes e gastar com entretenimento.” Mas… será mesmo? Será que esse papo de cortar entretenimento por causa da crise é verdade? Quero dizer, segundo a Ancine, os cinemas tiveram uma renda 20% superior. Eles não deveriam ter sido igualmente afetados? Será que não é a mudança dos hábitos de consumo deste tipo de mídia, que migraram das locadoras para os serviços on-demand como Netflix? Afinal, o próprio Netflix cresceu durante o ápice da crise americana.

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Esse é, obviamente, um exemplo simples. E mostra como é sempre mais tentador tentar achar uma resposta simples e fácil, mas que nem sempre é verdade. É mais reconfortante acreditar que a culpa é da economia mais do que das suas próprias decisões de negócio. Há um certo conformismo, assim como na frase do Chicó. “É assim mesmo, é a crise” é o “não sei hómi, só sei que foi assim” atualizado. É menos assustador do que acreditar que talvez o mercado tenha mudado, que o modelo do negócio mudou e que a gestão não acompanhou.

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Tudo no Brasil muda rápido. Se não bastasse as mudanças imprevisíveis por parte do próprio mercado, de repente, o governo pode aprovar uma nova lei que muda toda lógica de diversos negócios. Por isso, tão importante quanto planejar o que sua marca fará nos próximos anos, é fazer um trabalho constante de “planejação”: uma mistura de planejamento com ação. Adaptar e repensar constantemente seu modelo, baseando-se sempre nas mudanças reais e dados de mercado. Não adianta contratar uma consultoria antes de lançar, fazer um enorme trabalho e achar que isso está escrito em pedra e por isso será assim para sempre. É uma mudança constante e líquida, onde tanto o profissional quanto seu negócio precisam estar constantemente atualizados. Se para dar essa arejada você precisar de uma opinião externa, sinta-se à vontade para me puxar para um papo.

(P.S - O exemplo dado da cervejaria poderia ter dado certo apesar das pesquisas indicarem o contrário. É possível agregar valor em uma marca e até criar um novo segmento. Mas seria necessário investir uma quantidade muito maior do que um pequeno empresário geralmente pode.)

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