Se os números indicam a ponta do iceberg, são as relações que de fato o sustentam
Por Erica Sacchi Zanotti * e Cássio Aoqui 🏳️🌈 **
Um sistema, uma comunidade, um grupo só se transforma quando uma ou mais pessoas dentro dele passam por transformações reais. Embora óbvio, isso nem sempre é considerado no mundo do investimento social privado (ISP), onde a busca por escala, métricas e resultados rápidos prevalece. Muitas vezes, as pessoas por trás dos números são esquecidas. Há, no entanto, um movimento que busca desafiar essa lógica, colocando pessoas e relações no centro das transformações.
No Consulado da Mulher, instituto que tem a Whirlpool como mantenedora principal, tínhamos uma hipótese: trabalhar autoconhecimento e confiança resultaria em melhores aumentos de renda para as mulheres nanoempreendedoras beneficiadas. Iniciamos os testes no final de 2023, alterando os encontros iniciais de metade das empreendedoras, enquanto a outra metade seguiu o método antigo (grupo de controle).
A mudança metodológica foi radical e trouxe resultados surpreendentes. No novo método, as perguntas iniciais não focavam em negócios (Canvas, estratégia, planos de negócios), mas sim nas empreendedoras: "Onde estou agora?" e "Por que estou aqui?". Essas questões as incentivaram a refletir sobre suas trajetórias e criar um senso de pertencimento e conexão com o grupo. Temas como sucesso, autoestima e dinheiro, muitas vezes tabu para mulheres, foram abordados de forma aberta, criando um ambiente seguro para explorar medos e crenças limitantes.
Os vínculos de confiança, que antes levavam meses para se formar, apareceram nos primeiros encontros. Essa confiança mútua permitiu que as participantes se apoiassem genuinamente, formando uma rede de suporte que transcendia o âmbito profissional. Além disso, notamos um crescimento pessoal significativo. Elas passaram a buscar conhecimento não apenas para o negócio mas também para o autocuidado, mostrando uma compreensão mais ampla de suas necessidades como empreendedoras e como pessoas.
Passados 12 meses e após três medições comparativas entre os grupos, os resultados qualitativos do novo processo ainda são superiores. Um dos achados mais significativos foi a evolução da identidade empreendedora. No modelo antigo, essa construção era lenta e baseada em padrões externos; no novo, foi fortalecida organicamente, a partir das reflexões pessoais e da experiência compartilhada. Vimos mulheres, antes desvalorizadas, se transformarem em protagonistas de suas trajetórias, com uma visão clara de onde querem chegar.
Claro, o processo trouxe desafios. Algumas participantes, acostumadas ao ensino técnico tradicional, ficaram frustradas com a abordagem subjetiva. Cerca de 20% manifestaram cansaço com a autorreflexão, algo normal em processos de transformação interna. Outro desafio foi conciliar as expectativas dos financiadores. Convencê-los da importância de uma metodologia menos focada em números e mais voltada para o desenvolvimento pessoal foi difícil. Entretanto, os resultados qualitativos — maior confiança e coesão do grupo — serviram como argumentos para mostrar que essa abordagem também impacta positivamente os aspectos técnicos, como gestão financeira e planejamento estratégico.
No campo do ISP, essa experiência oferece reflexões valiosas. Focamos tanto em números e mensuração de impacto que esquecemos que a transformação social é, antes de tudo, um processo humano. O método que adotamos demonstra que, ao colocar a pessoa no centro, criamos condições para uma mudança mais profunda e sustentável.
Olhando para o futuro, reconhecemos que há desafios pela frente. Precisamos continuar ajustando a metodologia, especialmente no formato online, que exige novas formas de criar vínculos e confiança. Além disso, é necessário continuar monitorando os indicadores financeiros para validar plenamente nossa hipótese. Até agora, quem passou pela nova metodologia tem resultados comparáveis ao grupo de controle, mas com benefícios adicionais nas dimensões pessoal e de confiança.
Essa experiência reforça a necessidade de repensarmos o ISP de forma mais relacional e menos transacional. Sim, métricas e resultados financeiros são importantes, mas não podemos negligenciar o impacto invisível, que ocorre nas interações, nas subjetividades e no fortalecimento das pessoas. Só ao dar atenção a esses aspectos conseguiremos criar transformações sociais realmente efetivas e duradouras.
* Erica Sacchi Zanotti é gerente de programas do Instituto Consulado da Mulher e cocriadora do Coletivo Labô .
** Cássio Aoqui 🏳️🌈 é autor do canal Spray de Pimenta e consultor em filantropia.
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do GIFE e de seus associados.
Doadora, Mentora, Consultora e Facilitadora de Processos de (Des)envolvimento pessoal e Institucional
3 semAs relações do programa e na equipe, no dentro e no fora, o qualitative e o quantitativo... São alguns E que precisamos sustentar e é muito bom ter esse caso contato e demonstrado por vocês Erica Sacchi Zanotti e Cássio Aoqui. Navegar nas polaridades e complementariedades é essencial para o ISP.
Consultora, dirigente, conselheira e empreendedora ,+ de 40 anos atuando na área social. Fundadora do Instituto Aliança .
3 semUma reflexão importante e presente desde sempre quando falamos do ISP
Developing and delivering value, creating powerful collaborations, improving systems, and impacting communities.
3 semSe os números indicam a ponta do iceberg, são as relações que de fato o sustentam. Para compreender verdadeiramente o impacto de uma iniciativa, é essencial equilibrar o que os números mostram com o que as histórias revelam, unindo a objetividade do quantitativo à profundidade do qualitativo. Esse artigo é um bom exemplo dessa complementaridade. Muito bom Cássio Aoqui 🏳️🌈 GIFE Bom conhecer melhor o que tem feito o Instituto Consulado da Mulher
Gestora e consultora em instituições, programas e projetos sociais, de arte, cultura e educação. Responsabilidade social
3 semGestão ampliando e humanizando suas relações com as equipes começam a mudar o mundo do trabalho amplificando seus resultados. Pessoas são os fundamentos do trabalho. Acolhimento, priorização dos integrantes das equipes, empatia nas relações já mostram melhores resultados, inclusive fazendo do "trabalho" um lugar, cada vez mais, de prazer e realização. Parabéns pelo novo olhar sobre as relações humanas nesse mundo dos negócios.
Consultora | Desenvolvimento Profissional para Impacto Social
3 semTive o prazer de assessorar a equipe do Instituto Consulado da Mulher neste processo de mudança metodológica. As relações entre os membros da equipe também sustentaram (e seguem sustentando) a construção e implementação da transformação!