Se for reclamar, o faça com talento.

Se for reclamar, o faça com talento.

Coçar, fofocar, desejar, comer... o que mais é inerente ao ser humano?

Reclamar.

Reclamar é da nossa essência, é importante, mas é preciso elegância pra não te chamarem de reclamão.

De antemão, vamos criar um nome bonito para o ato de reclamar com elegância. Tipo storytelling, crowdfunding, copywriting...

Contar história, vaquinha e redação publicitária. Coisas que já existiam, mas falando em inglês ganham um roupagem nova em português.

hum... deixa eu pensar um pouco...

Complaining!

Vamos chamar de complaining.

Hoje eu vou compartilhar contigo a arte do complaining.

Se for praticar complaining com um amigo, familiar, psicólogo ou qualquer indivíduo com o qual você tenha essa abertura, avise que você vai praticar o complaining.

A outra pessoa vai sacar que você se preocupa com o tempo dela e com o que ela vai ouvir. É tipo avisar que vai contar uma piada.

O complaining que eu vou usar de exemplo aqui é real. É relativo ao meu estado de saúde pós-AVC. Ou seja, eu vou reclamar pra cacete!

Mas vou reclamar praticando o complaining. Note a diferença:

Sempre que posso, fico de olhos fechados. Enxergar duas imagens ao mesmo tempo consome uma energia que eu preciso poupar.

Enxergo assim por conta de um nervo ótico danificado por uma hemorragia no tronco-cerebral.

Na verdade, eu não sei se foi a hemorragia. Pode ter sido uma das lesões isquêmicas no lóbulo occipital. Tive duas por lá.

Meu olho direito se moveu tanto que não existe lente capaz de corrigir totalmente a visão dupla. Fechar um ou os dois olhos é sempre mais negócio. Nas horas vagas, fecho os dois.

Photo by Alina Grubnyak on Unsplash

O cérebro humano representa aproximadamente 2% da massa corporal. Proporcionalmente, é maior cérebro do reino animal.

Não é o maior órgão do nosso corpo, mas é ele o que mais consome. Cerca de 20% da energia consumida diariamente é só para o cérebro.

Quanto o funcionamento de cada órgão representa dentro desses 20%? Pesquisar esse dado demandaria uma energia descomunal, não vou gastá-la hoje, mas fiquei curioso.

Ler e escrever me consomem muita energia. É que além de enxergar duas imagens, minha visão treme tanto que não consigo me fixar em um mesmo ponto por mais de um segundo.

É como se tudo o que eu tento fixar o olhar fosse um cartaz segurado por alguém muito sacana, que não para de tremer o papel sutilmente, o suficiente para me deixar confuso e cansado de tentar enxergar.

Esse tremor é resultado de uma ataxia cerebelar. Sim, também tive lesão no cerebelo.

Uma outra lesão atingiu o sistema vestibular, me tirando o equilíbrio por completo. 

Gostaria de saber o quanto minha visão tem consumido de energia hoje em dia. E o quanto reconstruir o equilíbrio me rastejando, engatinhando e rolando no chão consome. Não deve ser pouco.


Complaining e um cérebro mais criativo.


A criatividade é que nem reclamar: é inerente ao ser humano. Inerente em diferentes níveis, é claro. Mas todos somos aptos a criar, seja na imaginação ou fisicamente.

Meu cérebro agora cria sozinho. Melodias e ruídos ocupam o topo da lista de criações que eu não encomendei.

Histórias fantasiosas vêm em seguida nesse ranking e me fazem tomar um cuidado especial ao abrir a boca.

Acho que, além da minha esposa e do meu cachorro, não existe muita gente querendo ouvir minhas excentricidades e divagações.

Aliás, tá aí uma coisa que exige pouca energia do cérebro e, mesmo assim, às vezes a gente não consegue fazer, que é ficar calado.


Acima do pescoço, insetos e a imprevisível orquestra da alta frequência.


Imagine que você mora nos arredores de um pequeno aeroporto, desses de interior. Todos os dias, um monomotor passa horas a taxiar dentro e fora do hangar.

Imagine que, cansado do ruído do monomotor, mesmo que seja um barulho distante, daqueles vez ou outra trazidos em maior volume pelo vento, você sai pra caminhar na natureza, perto de casa. Você se senta próximo ao topo de uma colina. 

São seis da tarde, lusco-fusco. A mata é densa e, próximo a você, um ruído de água. São as águas de uma nascente, poucos metros acima.

A noite vem chegando e traz com ela insetos de vários sons. Sapos e rãs, corujas e o riacho que se forma metros morro abaixo. Ao fundo, bem ao longe, você ainda ouve o monomotor se juntar à massa sonora do ambiente.

Próximo dali há um estação da companhia de energia local. Dezenas de transformadores de voltagem trabalhando simultaneamente produzem um som de baixo volume e frequência altíssima.

Se você não conseguiu imaginar o som dos transformadores, tente imaginar várias geladeiras antigas com os motores armados ao mesmo tempo. Agora aumente a frequência, deixando o som bem agudo. 

Os sons ilustrados acima são mais uma dessas criações que eu não encomendei do meu cérebro. Uma forma complaining de dizer que vivo com ruídos na cabeça.


Quando a metade vale tanto quanto um inteiro. 


Do pescoço pra baixo, metade do corpo se desligou sensorialmente. A metade esquerda. Pode não parecer, mas a falta do tato em parte do corpo causa um prejuízo sem tamanho.

Imagine-se segurando um copo descartável com a mão esquerda e um de vidro com a direita. Ambos estão cheios d’água. O que faz você definir o modo de segurar cada copo?

Primeiro, imagine a pressão dos dedos em cada copo. O que fez você definir essa pressão? Terá sido a textura ou o peso de cada copo? Terá sido ambos? O que seus cotovelos e ombros tem a ver com a equação peso vezes textura captados pelos sensores da pele dos dedos?

Consegue perceber que, sem o tato, você não consegue tirar os copos do lugar sem derramar a água? Consegue aplicar os fundamentos do exemplo em outras situações do seu dia-a-dia?

Textura, pressão, peso, intensidade, sensação, movimento, morno, quente, frio, gelado. Nenhuma dessas palavras tem sentido para uma parte do corpo que não tem o tato.

Todo o meu lado esquerdo está assim . Algumas regiões do corpo até são sensíveis, mas independentemente do estímulo, a sensação é sempre a mesma: uma espécie de impulso elétrico.

A falta de sensibilidade provoca a falta de coordenação que, somadas à ataxia e falta de equilíbrio, fazem um fuzuê só.


Saiba aplicar o complaining.


Aplicar o complaining sem atenção à técnica pode lhe causar prejuízos. Tome este texto como exemplo, onde eu reclamei praticamente do início ao fim sem querer provocar pena ou autopiedade.

É muito importante tomar esse cuidado. O complaining e a reclamação são separados por uma sútil carinha de dó.

Se você quer que as pessoas sintam pena, você não está praticando o complaining corretamente, você só está reclamando e precisando de atenção. Não tem nada de errado nisso, só acho importante fazer de forma consciente.

uma vitamina D

Foto: esposa

Este texto é uma forma de fazer com que minhas conexões, meus amigos e colegas de profissão (e a quem possa interessar) tenha ciência do que eu enfrento diariamente. Como minha cognição foi preservada, as pessoas tendem a achar que a cadeira de rodas é o maior dos meus problemas. A mobilidade, na verdade, é o menor deles.

Um abração, gente! E quando forem reclamar de algo, lembre-se de fazê-lo com elegância. O melhor mesmo seria não reclamar, mas já que isso seria uma utopia, bom complaining!


Este texto foi orginalmente publicado em soulbeta.com

Meu Instagram: @gilkelmer





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