Se a vida é um sopro, o brasileiro grita que ela não passa de um suspiro
Mais de 420 mil famílias podem chorar a morte de um ente querido, que não passam de números. 28 cidadãos podem perder a vida numa chacina, que não passam de bandidos. Uma boiada pode derrubar o equivalente a 106 campos de futebol no meio da floresta Amazônica, que ganha a chancela empresarial. Um especialista em fazer rir pode lutar até o fim contra o vírus mutante, que há quem o mande para o inferno. Torcedores podem xingar um segurança de macaco, que escapam da cadeia por um “erro na denúncia”. Mais de cinco mil podem furar a fila da vacina e ninguém mais se espanta. Afinal, no Brasil de 2021 o tropeço é a regra, não exceção.
A gente discutia se teria futebol, e no Maracanã a bola rolou para Flamengo e Bangu enquanto torcedores perdiam a luta contra a Covid-19 em pleno hospital de campanha anexo ao estádio. Dizíamos que não ia ter golpe, e caímos num poço sem fundo onde até a imaginação hesita alcançar. Não soltamos a mão de ninguém, até que ela virasse condutora de contaminação.
Faz tempo que piada não tem mais graça por aqui. Discutimos bola e vida, bolso e leito, liberdade de expressão e discurso de ódio, opinião e informação, empatia e saúde mental, enquanto a maioria se divide entre falta de teto e comida no prato.
Talvez o futebol, com seus infinitos protocolos, pudesse ser o alento, não fosse o principal espelho dessa sociedade que o margeia. Jogador que é da elite sul-americana tem a vacina chancelada pela confederação. Magnatas europeus baixam suas máscaras para tentar levar o bolo inteiro para casa, num falso altruísmo que corrompe o mérito esportivo, zomba da distribuição de renda e mancha agremiações às custas de interesse pessoal.
A elitização do futebol, enfim, encontrou seu limite com a fracassada Superliga, mas segue operando em outras frentes. Da extinção do tobogã, setor mais popular do estádio do Pacaembu, em São Paulo, até a disputa de um russo de 54 anos, colecionador de iates, petróleo, gás natural, e dono do Chelsea, com um xeique também cinquentão que controla isso e mais um pouco no Golfo Pérsico, além do Manchester City, na Inglaterra — pela final da Champions League.
Depois de fracassar na tentativa de alienação com o impiedoso universo da bola, limitei-me a uma busca intensiva, voluntária e permanente por novelas, BBB, séries, livros, filmes, jogo e o próximo reality show no meio do mato que pintasse na TV. Até que saio para passear com Zico (o cachorro) e entro num mundo paralelo onde o sagrado e o profano se abraçam numa relação mútua entoada pelos quatro cantos de bares e igrejas. O que também é curioso, porque o taurino teimoso, na maioria das vezes, sou eu. Clientes e fiéis insistem em caminhar para o mesmo destino de mãos dadas, com uma postura tão letal quanto o cano de um fuzil.
Negar o passado é um castigo cultural. Rechaçar o futuro é do Brasil de 2021. Não se saúda mais por estar bem, mas vivo. Se a vida é um sopro, o brasileiro grita que ela não passa de um suspiro, principalmente para uma população que agoniza.
O “tio do pavê” evoluiu para um repertório racista, homofóbico, xenófobo e desumano que, em choque com seu teto de vidro, o faz pedir desculpas se alguém se sentiu ofendido. A “tia do zap” agora dissemina fake news sobre vacinação, mas se queixa quando recebe uma vacina de vento. São elogiados pela sinceridade, quando emanam grosseria. Enaltecidos pela personalidade forte, quando exalam opressão. Justos, quando não cumprem mais do que a obrigação. Irônicos, quando zombam do luto. Imperfeitos, quando sujos de sangue.
Pudera hoje dormir com esperança de dias melhores, não fosse exatamente esse o tipo de sujeito que vai acordar amanhã para governar o Brasil.
Planejamento, Conteúdo, PR, Gestão de Crise
3 aBelo texto. Triste realidade.