Será que somos todos egocêntricos?
Quando os ingleses traduziram a palavra alemã ich utilizada por Freud para o termo latino ego, talvez não puderam prever o quanto o conceito se tornaria cafona com o passar dos anos. Ich poderia ser simplesmente traduzido para o I, do inglês, e posteriormente para o eu, do português.
Ich foi a maneira simples como Freud se referiu ao centro da consciência humana, onde se pondera sobre a realidade e sobre as consequências das nossas ações. Em outras palavras, o ego é apenas o eu, esta pessoa que recebe o mundo e a ele responde.
Mas, com o tempo, o uso do latim acabou tornando o conceito um tanto exótico. No senso comum, quando se fala em ego, refere-se a alguma coisa que temos, como se estivesse fora de nós, e não a alguma coisa que somos.
Fala-se, por exemplo, que artistas e celebridades têm o ego inflado. Em casos assim, a palavra aparece com um forte teor negativo, como se o ego fosse um defeito na formação da pessoa -- o que nos leva ao uso incorreto do termo egocentrismo.
Ser chamado de egocêntrico, hoje, é mais do que um xingamento, é quase um diagnóstico. E, aparentemente, qualquer pessoa se sente capaz de cravar essa doença nas costas de seus semelhantes. Porém, se o ego é tão e simplesmente o "eu", então todos nós somos egocêntricos, porque todos nós somos um "eu".
Obviamente, alguém que vivencia a realidade sem ser capaz de somar aos seus pontos de vistas as necessidades dos outros oferecerá desafios às relações comunicativas ao seu redor.
Por outro lado, não há como haver alguém que não tenha sua vivência centrada em si mesmo pelo simples motivo de não ser possível ter experiências de fora do seu "eu". Ao corrigirmos o conceito, aprendemos que o egocentrismo não é tanto o desvio da norma, mas é a própria norma.
A formação do "eu"
Muito antes da compreensão do "eu", surge a compreensão do "nós". Isto é: a noção de quem você é, com suas características emocionais, psíquicas e comportamentais, se desenvolve conforme você se relaciona com o seu ambiente e com as pessoas com quem convive.
Os relacionamentos a que me refiro são, principalmente, aqueles mais fundamentais para a sobrevivência. Muito antes de saber quem é, um bebê recém-nascido já reconhece seu cuidador ou cuidadora. O pai, a mãe ou algum outro adulto responsável irá cuidar dele em seus primeiros e frágeis meses de vida, e ao bebê só restará seguir o fluxo das decisões que são tomadas por ele.
Esse ambiente familiar será aquele que lhe fornecerá suas primeiras experiências sociais: aquelas nas quais deve-se seguir determinadas ordens que são exteriores ao "eu" e não foram determinadas por ele. Na prática, então, esse primeiro "nós" irá se dar enquanto imposição e reforçará aqueles valores que nortearão nossa conduta ao longo da vida -- o "supereu", ou superego.
Aquele bebê cresce, se torna criança e começa a entender qual é o lugar que ocupa e quais são os papeis que se esperam dele conforme atua dentro das regras impostas pelo "nós". Vai aparecendo assim um sentimento de "eu" diante das relações que constrói com esse "nós": a criança aprende que é diferente das outras pessoas de sua família.
Isso não quer dizer que esta filiação seja pacífica. A criança agora compreende seus papeis, bem como as funções daqueles com quem convive, mas tem imensa dificuldade em conceber as necessidades alheias. Por isso, será terrivelmente egocêntrica: se sente fome, quer ser alimentada imediatamente; se está entediada, quer ser entretida... o mundo a sua volta parece atender às suas demandas.
Esse egocentrismo, porém, não é um desvio de carácter. É uma etapa do próprio desenvolvimento. A criança está descobrindo o "eu" na medida em que enfrenta as determinações do "nós", testando assim quais são os limites entre os dois. Então, ela se acostumará a colocar suas necessidades antes daquelas de outras pessoas como forma de afirmar-se, sobretudo, diante da tendência homogeneizante do "nós".
Esse conhecimento egocêntrico, portanto, é uma das maneiras mais fundamentais de conceber o mundo. Para qualquer novidade que apareça, a primeira forma de entendê-la será a de colocá-la em relação a sua própria vivência. Em outras palavras, precisamos nos afirmar diante do mundo e, por isso, entendemos cada evento primeiro no que nos afeta.
Quando chover, por exemplo, e você vier a esquecer seu guarda-chuvas, provavelmente pensará: "poxa, logo hoje". Para compreender a coisa "chuva", você a coloca dentro da sua perspectiva primeiro, em como ela lhe afeta, antes de ponderar como o clima, e tantas outras coisas, não são afetados diretamente pela sua decisões ou pelas condições em que se encontra.
Ou ainda, quando uma notícia econômica chega até você -- alta do dólar, da inflação, etc. --, ela só será compreensível se for colocada em termos que deixem claros como o evento lhe impacta diretamente. Só então, e bem depois, se houver disposição para isso, você poderá entender o seu impacto em outras pessoas.
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Em suma, todos nós somos egocêntricos. Somos egocêntricos porque tomamos o mundo pela referência do "eu" primeiro e contrastamos esse "eu" ao "nós" da nossa família ou da sociedade como um todo. Fazíamos isto quando éramos crianças, continuamos fazendo isso quando adultos. Resta saber quais são as vantagens e os perigos de pensarmos assim.
Autoconfiança e diferenciação
As afirmações egocêntricas são também importantes para o apoio da autoconfiança.
Quando éramos crianças, por exemplo, adorávamos receber elogios dos nossos pais aos mostrar a eles um novo desenho que fizemos. Mas o que mostrávamos, de fato, não era o desenho, e sim a nós mesmos. Ao dizer "ficou maravilhoso!", nossos pais não estavam a elogiar nosso feito. Na verdade, o que diziam era "eu reconheço você como alguém e reconheço a importância das suas ações na nossa comunidade".
Assim como era com nossos pais, seguiremos em busca de elogios por toda a vida, seja de professores, de supervisores, de chefes ou dos seguidores de uma rede social.
A formação do "eu" depende que este sujeito busque e encontre pela sua própria voz na teia das relações com outras pessoas. Conforme somos reconhecidos, construímos a certeza de que somos alguém em meio aos demais.
Por outro lado, essas afirmações egocêntricas de autoconfiança são, sempre, positivas em relação ao "eu" e podem ser negativas em relação ao mundo exterior. Com isso, o egocêntrico cria formas de diferenciação entre coisas e pessoas tendo o "eu" por referência.
É nesse aspecto que o egocentrismo representa um perigo na comunicação. Afinal, embora essas formas de diferenciação sejam necessárias para que a pessoa compreenda o seu lugar, elas também podem interditar relações com tudo que possa ser diferente do "eu" e tendem a difamar o "nós".
Em âmbito pessoal, teríamos alguém que foi tão fortalecido por afirmações de autoconfiança que, facilmente, sobrepujaria qualquer outro que não favoreça suas perspectivas. Em âmbito social, teríamos grupos inteiros de pessoas que se sentirão no direito de excluir ou marginalizar tudo que não cabe em suas caixinhas de identidade.
Podemos deixar de ser egocêntricos?
Se entendemos o ego como algo que temos, até poderíamos imaginar formas de controlá-lo. Mas se soubermos que o ego é o que somos, é a maneira como constituímos ao longo da vida essa noção de "eu", teremos algo ainda melhor: não domar, e sim colocar nossos anseios, interesses e perspectivas em escopo mais coletivo, para que nossas necessidades convivam com as necessidades dos outros.
Todo este papo sobre o ego revela uma outra e importante questão: de que o enorme desafio da comunicação humana continua sendo como podemos conviver melhor uns com os outros. Ao fim, o que queremos é aprender a viver em equilíbrio entre o "eu" e o "nós".
Não deixaremos jamais de ser egocêntricos, porque os olhos com os quais enxergamos o mundo não deixarão de ser os nossos próprios. Mas podemos somar olhares e perspectivas às nossas, de modo que a diversidade de relacionamentos possam ir, aos pouco, enriquecendo nossas experiências.
A multiplicação das relações e de comunidades agregadoras nos ajudará a superar a inocência infantil que nos torna, mesmo quando adultos, excessivamente dependentes das afirmações de apoio a autoconfiança.
Com isso, o risco de formas mais agressivas de diferenciação também se dilui, porque o "nós" também não se apresentará de maneira impositiva e restritiva. Enfim, o mundo externo não se apresentará tão recorrentemente enquanto ameaça.
O que nos leva a principal conclusão: não há problema coletivo que possa ser superado apenas individualmente. Questões coletivas pedem por soluções coletivas. E a maneira nutrimos nossa comunicação e nossos relacionamentos uns com os outros é a real saída para os incômodos e aflições que sentimos tão cotidianamente.