Ser. Ser Charlie. Sermos Humanos.
Agora que um pouco de distanciamento é possível, arrisco-me a tocar o tema.
Por uma triste coincidência terminava a leitura da Batalha de Moscou, do premiado jornalista inglês Andrew Nagorski, quando ocorria o infame episódio de Charlie Hebdo. À primeira vista pode não haver correlação entre um livro histórico, sobre provavelmente o mais sangrento episódio das guerras modernas, com a morte dos cartunistas. Claro que o objetivo primário do texto é retratar a invasão da Rússia pela Alemanha durante a 2ª. Guerra, fornecendo uma tese bastante completa sobre os motivos da vitória russa e de como a guerra muda definitivamente a partir daí. A pesquisa é cuidadosa, fluida, narrando os acontecimentos ora do ponto de vista dos grandes personagens históricos, ora dos soldados e camponeses anônimos. Ao fim fica a pergunta de como um episódio tão importante da nossa história recente possa ser tão negligenciado, tão pouco estudado e falado. Ou ainda e talvez mais importante no momento: como foi possível o surgimento de dois regimes tão terríveis, que levaram seus respectivos países literalmente à ruína. E finalmente, o que tudo isso tem a ver com os recentes acontecimentos na França?
Vários traços comuns aos regimes Nazista e Stalinista são descritos por Nagorski: o culto à personalidade, a censura, o nacionalismo, imperialismo, racismo. Contudo, não é objetivo do livro aprofundar-se no tema. Há grandes trabalhos focados em explicar o fenômeno, sendo um dos primeiros, e referência incontornável, As Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt, publicado ainda no rescaldo da 2ª. Guerra Mundial. Pois cito aqui uma ideia especifica que parece-me central ao entendimento do episódio do Charlie Hebdo em particular: o fenômeno da criação da consciência coletiva de massa. Simplificando, a dinâmica que se estabelece quando um regime forte, onipresente, proporciona alento a (milhões de) indivíduos, os quais destituídos de trabalho, de referências afetivas e sociais, encontram-se suscetíveis a seguir uma liderança que lhes dá alguma identidade e sentido a vida. Talvez dito de forma diferente, o totalitarismo em última análise pode ser uma radicalização modernista, onde o Ideal sobrepõe-se ao Ser, o Estado Ideal aniquila e redefine o sujeito, onde o indivíduo resigna-se ao papel de mero coadjuvante e rejubila-se em pertencer a um ideal.
Claro que esse processo não é e nem pode ser compreendido pelo individuo-objeto em causa, excluindo-se aí qualquer possibilidade de análise crítica quanto a legitimidade moral, estética, funcional do movimento. O que talvez explique em parte o êxito aglutinador dos regimes totalitários de meados do século passado e talvez ainda continue explicando o dogmatismo religioso do Oriente Médio. Nesse horizonte, algo desponta quando pensamos no atentado ao Charlie Hebdo: a completa intolerância à liberdade de expressão. Liberdade de questionar, brincar, ou simplesmente ser - o mais precípuo dos direitos do indivíduo. E talvez por isso o primeiro e mais caro valor a ser combatido em qualquer regime totalitário, o qual buscará sempre o controle absoluto sobre o homem, dominando cada aspecto da sua vida.
Faz 30 anos que Tancredo Neves foi eleito presidente. Finalmente, expressar-se livremente torna-se institucionalmente e oficialmente permitido. Surgem as condições para que comecemos a participar do mundo contemporâneo tão falado nos EUA e Europa, onde mulheres participam ativamente da sociedade, minorias são respeitadas e até incluídas e etc e mais etc. Podemos começar a pensar no sujeito como fim e não mais como meio. Usualmente não temos mais no Brasil o radicalismo de combater ideias com tiros, mas cabe a reflexão do quanto realmente permitimos a divergência de pensamento em relação ao outro. Em cada relação, seja nas diferenças obvias de gerações, gêneros, crenças e seja nas diferenças sutis entre valores, desejos e medos.
Quais são os nossos próprios limites de tolerância nas relações pessoais, sociais, familiares? Não é fácil, dá trabalho, às vezes alguém “passa dos limites”, embora os limites jamais possam ser delimitados por armas. Porém, apesar de todos os poréns, a livre expressão não é negociável. É com ela que construirmos o alicerce de tudo o que conquistamos, da busca pela significação e da libertação do sujeito. Sem possibilidade de escolha, não há sociedade plena e sem isso, a própria humanidade. É a diferença entre as trevas e a luz, a garantia da sanidade mental, que tanto faltou e ainda falta nas aventuras totalitaristas do homem. Expressar-se é o que nos faz Ser. Ser Charlie. Sermos Humanos.
Escritor
9 aA filosofia sempre esteve na moda. O problema são as pessoas que não percebem isso.
Leadership Development Facilitator | Coach | Train-the-Trainer | Cross-Cultural
9 aQue análise fantástica! Eu nunca tinha parado para pensar na criação da consciência coletiva desta maneira, nem associar características comuns aos regimes totalitaristas com a tragédia do cartunista Charlie. Obrigada por nos oferecer esta nova perspectiva.
Gestor de Alojamento Local na Vale Sampaio
10 aComo é que os catolicos fanaticos reagiriam se viesse uma revista muçulmana fazer caricaturas de Jesus Cristo. Porque é que a igreja portuguesa contestou a simples canção do Rui Reininho em que dizia "atirem agua benta". Fanaticos há em todas as religioes, na minha aldeia os bois também têm nomes.
Executive Director / Leadership Specialist / Executive Coach (MCC/ICF) - R122 Boutique / Director - R122 Leader
10 a'Bora começar a escrever para algum veículo? =)
Exit Planning, Investment Banking, Valuations
10 aGreat post. Hope you are well.