Sobre Marias, Robertos e o 28.4
10%.
Era esse o percentual que faltava para minha mãe me matricular no cursinho após eu ter feito uma prova e recebido uma bolsa de 90%.
A oferta era irrecusável: só deveríamos pagar 1/10 do montante, e eu entrava para um projeto especial para estudantes "com alto potencial de aprovação", com preparatórios exclusivos para passar na FGV (minha meta à época) e acompanhamento pedagógico personalizado regular.
Um porém, que virou contudo, entretanto, todavia: não tínhamos esse valor à mão. E isso também implicaria eu deixar de trabalhar para apenas estudar.
Mesmo ciente de que aumentariam minhas chances de "vencer na vida", minha família nunca teve recursos financeiros para me bancar o estudo em escolas e colégios particulares - sou filho da escola pública, da pré-escola ao hoje doutorado, passando pelo ensino técnico, pela graduação e pelo mestrado.
Mas, para minha mãe, estudos sempre foram prioridade. Foi aí que ela decidiu engolir o orgulho nipônico e pedir os 10% emprestados para o Roberto - amigo tomateiro como o meu pai e que, tempos atrás, também tinha ajudado a comprar meu primeiro computador, um 486 DX-4 que já se fazia essencial por eu estudar programação no ensino técnico e assim adentrar o "mercado" de trabalho.
Felizmente, Roberto topou. E, uma vez garantidos meus estudos de "alto nível", fiz o que me cabia fazer: larguei o trabalho e debrucei como nunca nas apostilas, correndo contra o tempo para compensar a defasagem e a concorrência excludente dos vestibulares (ainda não existiam políticas de cotas - nem de escolas públicas -, e o movimento de cursinhos populares e gratuitos, cada vez mais essenciais hoje na formação da juventude cidadã, apenas iniciava).
Aqueles 10%, Roberto nunca mais viu de volta. Pois ele próprio, tendo vivido à margem da educação e com a vida marcada por vulnerabilidades - entremeada por curtos relampejos de bonança, como muitas pessoas neste Brasil desigual -, já não tinha mais sua barraca, tornara-se alcoólatra e em situação de rua.
Tempos depois (quando eu já podia retribuir o pagamento), foi dado como pessoa desaparecida; provavelmente morreu de forma não identificada. Nunca mais o encontramos.
Se hoje, Dia Mundial da Educação, estou aqui, debatendo filantropia, decolonialidade, educação, sustentabilidade, paradigmas e afins, é porque a ele devo muito. Não significa que a vida seja fácil - como posso erroneamente aparentar entre estes textos vagueando na rede social. E longe de mim querer romantizar ou glamourizar qualquer história de "superação" a partir da escassez, ou menos ainda de meritocracia - quem me conhece sabe bem o que penso sobre; mas tenho boa consciência do lugar de privilégio e de acessos que ocupo.
Quanto aos 90% restantes, devolvi ao cursinho com juros. Passei em primeiro lugar na FGV-SP e em segundo lugar em Administração na FEA-USP, assim usaram e abusaram do meu nome nos banners, estatísticas de aprovação e propagandas sobre como conseguiriam extrair "mais de você em você mesmo". O alto potencial havia se realizado. Porém, os desafios, longe de terminados.
Mal deu para comemorar as aprovações e conheci a máxima (por mim inventada): "Entre estudar e trabalhar, fique com os dois", realidade de milhões de estudantes atualmente. Desisti do sonho antigo de cursar FGV, cujas aulas eram em tempo integral, para poder estudar precariamente à noite e trabalhar integralmente para ajudar na renda da família, que só minguava. Decisão que hoje tento celebrar em razão de tudo o que vivi dada essa "escolha", ainda mais pelo privilégio de cursar uma universidade pública de excelência, para a qual sigo me voluntariando sempre que possível como forma de retribuição. Mas decerto frustrante à época, depois de tanto empenho e de tanta gente envolvida.
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Porém não podia me dar o luxo de reclamar e, sim, teria de me considerar um "vencedor", afinal, para muitos, "até" o ensino médio (colegial, para mim) havia superado (ao contrário da maioria das pessoas com quem cresci em sala de aula, muitas das quais brilhantes). Viria a me tornar, assim, o primeiro do meu núcleo familiar a concluir o nível superior, como de fato o fiz.
O resto é (mais) história.
A pergunta que ressoa forte aqui dentro neste 28.4 a partir do que vivenciei é: quantos "alto potenciais" não existem por este Brasil hoje e que não têm nem terão um Roberto nem uma Maria (minha mãe) em suas vidas?
O que me traz a outras infindáveis reflexões: em que medida precisamos de mais Robertos e Marias? Como fazemos para que a existência de Robertos e Marias não sejam condicionantes para se acessar educação "de qualidade"? O que é educação "de qualidade"? Para quem? Por que não é óbvio que devemos partir de que toda pessoa é um "alto potencial"?
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Ainda sobre o Dia Mundial da Educação...
Recomendo a leitura na íntegra (e adoraria ouvir opiniões sobre...), mas fica aqui o spoiler, em tradução livre (usando o Deepl), que dá pistas do texto:
Seis mitos:
Seis princípios:
Internacionalista | Atriz | Dramaturga | Cofundadora Movimento AMPLIA
1 aMuito tocante seu relato, Cássio, na medida em que não romantiza os desafios que você enfrentou e nem os que muitos jovens ainda enfrentam hoje. Os cursinhos populares tem se mostrado cada vez mais essenciais para a formação preparatória para o vestibular e formação cidadã, para a vida. Com o Movimento AMPLIA nós tentamos diminuir as barreiras enfrentadas pelos estudantes nessa fase pré-vestibular, uma etapa em que existem poucos auxílios (como meia passagem para estudantes) e que inclusive pagar a inscrição é um desafio. Espero que essa rede de Marias e Robertos, tanto com apoio financeiro quanto moral e emocional, cresça cada vez mais!
Assessora Consular no Consulado Geral do Japão em São Paulo
1 aCássio Aoqui , já o conheci fazendo os dois: trabalhando e estudando (e, ainda, cursando intensivão de inglês nas férias). Sempre te admirei, você sabe, desde aquela época. Mas lendo esse seu relato, a admiração se estendeu à sua mãe. Corajosa. Até eu tenho gratidão ao senhor Roberto que te auxiliou naquele momento. A gente não vence na vida sozinho. Gratidão aos que te ajudaram e também àqueles que me ajudaram em minha trajetória. Gratidão nunca é demais. Obrigada por me fazer lembrar disso: 感謝.