Sol da Rebeldia
Hoje exercitei meu direito à rebeldia. Logo eu, amante das regras e normas, cidadã centrada que sou. Mas o dia pedia, ou melhor, exigia que meus pés tivessem vida própria.
Cometi um desatino, expus minha figura em público. Lógico, seguindo o que me foi imposto por líderes, agarrados em seus poderes. Devidamente semioculta, meu rosto impedido de se manifestar em sua integridade, mas assim mesmo ousei.
Com esse período de quarentena, ou para alguns, de prisão domiciliar forçada, me habituei a contemplar o céu e o sol, devidamente enquadrados por janelas, grades e amarras, porque vivemos em um país em que não podemos abrir as portas do nosso espaço sem risco.
Nunca tivemos um ano com o céu tão bonito. O outono, e agora o inverno nos ofertaram um espetáculo de azuis, amarelos, violetas e laranjas. Acredito que apenas quando criança tinha visto tamanho esplendor.
Quatro meses sendo refém. Quatro meses esperando algum sentido, alguma lógica em tudo que está se passando no mundo. Várias emoções depois, quinze dias compartilhando meu corpo com o objeto de tanto medo, grata por ter vencido essa batalha, hoje tive um dia de pura sensatez.
O sol me chamou para fora. O céu azul espesso de luz cantarolou para mim, e assim, meio displicente, meu coração assobiou algo que era novo. Rebeldia.
Quem diria que sair de casa seria considerado um ato de desobediência.
Eu, acostumada a me expressar de maneira franca, coloquei minhas vestes de protesto, calcei meus pés com o vento da saúde e escondi meu sorriso desafiador por trás do véu.
Fui. Ampla, sentindo o ar filtrado por três camadas. Mas fui.
Andei por aí, como meu anjo da guarda recomendou. É preciso, ele disse, seu coração precisa bater direito, precisa se expandir. Dentro de casa ele encolheu um pouco, ficou receoso de se expressar.
Ao andar em compasso de tocata, me deliciei com a rua, seus sons, suas árvores, invejando os pássaros que podem fazer isso o tempo todo, e absorvi tudo o que pude: o calor, a luz, o vento e os outros. Sim, os outros, porque havia outros rebeldes como eu.
Uma confluência de rostos ocultos, compartilhando cuidadosamente desse dia lindo.
Senti a saúde entrando em todas as minhas veias, um deleite emocionado.
Abracei minha cidade, como eu gosto dela.
Apesar das muitas restrições, foi a primeira vez em muito tempo que senti clareza em tudo isso. Senti a vitória se aproximando, ainda tímida, mas presente.
Uma hora ela também se rebela e mostra seu poder. Estou ansiosa por isso.
Voltei para meu lar. Corada como se tivesse recebido mil beijos, meu coração feliz.
Sem sorrisos, só felicidade. Minha rebeldia funcionou. Me recordou o que é viver, não apenas existir. O caos acabou.
SCS