Somos daquilo que estudamos

Somos daquilo que estudamos

Para todo o calouro de faculdade, certeza e dúvida duelam para pontuar a sentença “Acertei na escolha...”. Logo que começam as aulas, logo nos primeiros dias, o mundo muda para o aluno ingressante no curso de Geologia, e nesse novo mundo, as coisas nunca mais voltam a ser como eram antes. O que até então era pedra agora é rocha... barrancos viram afloramentos... Aquela porção de pedrinhas guardadas em caixas de sapato em casa vira coleção de amostras rochosas do acervo particular.

Ele começa também a falar uma língua diferente. As palavras são estranhas, com encontros consonantais mais estranhos ainda. Feldspato, Arfvedsonita, Granodecrescência Ascendente são apenas alguns exemplos desse excêntrico idioma.

A ideia de que ele passa por um ritual de iniciação para integrar uma seita de loucos apaixonados por um martelo não está muito longe da realidade.

E agora, me inserindo no contexto, confirmo que esse mundo da Geologia é apaixonante mesmo.

Discute-se se a Geologia é uma ciência em si ou apenas a aplicação da Física no entendimento do planeta Terra. Mas veja, conceitualmente, sendo a Física a descrição matemática da Natureza, nenhuma linha de pensamento que tenha a Natureza como foco de estudo pode ter a presunçosa intenção de escapar das leis que a governam, muito pelo contrário, a aplicação destas é condicionante primordial para um avanço verdadeiro do conhecimento.

Mas independentemente de ser ciência, filosofia ou história natural, para merecermos a compreensão da Geologia, é preciso olhar para trás e buscar as suas raízes.

Nessa viagem ao passado, passamos pela consolidação da nossa teoria da Tectônica de Placas no período pós-Guerra; pelo início do século XX com Wegener e suas ideias da Deriva Continental; pelos séculos XIX e XVIII com a conceituação do uniformitarismo e do plutonismo de Lyell e Hutton; pelo século XVII e os fundamentos da estratigrafia de Steno. E retrocedendo adiante, voltamos até a Grécia Antiga do século VI ac, época em que o homem – o primeiro filósofo - começou a desenvolver um raciocínio científico sobre a Natureza, buscando a explicação dos fenômenos naturais não mais nos mitos e deuses, mas na observação e interpretação daquilo que seus olhos viam. Este momento da história é marcante, emblemático, pois este é o momento embrionário das ciências naturais, e daquele homem, os geólogos são descendentes diretos.

Fala-se que o que caracteriza uma ciência e ao mesmo tempo a diferencia das outras é o seu objeto de interesse e o seu método de investigação. Dizer o que a Geologia estuda é simples, é a composição e a estrutura da Terra, sua formação e sua evolução ao longo do tempo, entretanto, não tão simplória assim é a forma pela qual esse nosso objeto de interesse se nos apresenta.

Antes de tudo, é necessário entender que existe uma interconectividade entre as relações de causa e efeito, conexões que criam um ambiente contextual, sistêmico, integrado, de modo que o que se estuda é um sistema Terra. Os registros são falhos, os dados são deficientes, a sequência histórica de informações está sempre incompleta. Os processos geológicos são maiores que o homem, eles acontecem por si, alheios ao nosso controle, e os anos nossas vidas são uma janela minúscula frente ao seu tempo de desenvolvimento, o que impede que façamos observações diretas dos mesmos. De hoje à formação do planeta, do tetraedro de quartzo ao geoide terrestre, os fenômenos acontecem numa enorme variabilidade de escala, espacial e temporal.

Essas características são tão especiais e tão contundentes que acabam por condicionar o modo pelo qual podemos reunir informações e obter conhecimento. Por isso, nosso método de investigação é essencialmente sensorial/visual, necessariamente observacional/empírico, fundamentalmente interpretativo/hermenêutico. Não é pela incredulidade de Tomé, mas nós precisamos ver para conhecer, observando e interpretando os detalhes do proceder da Terra, sabendo que, no processo de compreensão, o significado de suas partes é esclarecido a partir de sua relação com o todo enquanto que a concepção do todo é construída a partir do entendimento de suas partes.

Recuperando o fôlego, pode-se então assim sintetizar:

Geologia é o processo filosófico-científico, sensorial, empírico e hermenêutico, que estuda a composição, a estrutura e a história da Terra.

Acredita-se que, ciente da árvore, sabe-se o fruto. Se assim for, tal-qualmente, conhecendo a ciência se conhece o cientista. Como o limão vem do limoeiro, geólogos são geocientistas sensoriais, empíricos. Absorvem e criam conhecimento pela observação e interpretação da Natureza, como fez o primeiro filósofo. Não alimentam sonhos nomotéticos, mas elaboram e utilizam teorias, princípios cognitivos e conceitos estruturantes como caminhos de interpretação e de compreensão.

Nós geólogos somos assim, na vasta amplitude dos nossos interesses, pesquisamos do micro ao planetário, estrutura e composição, de hoje ao início da Terra.

“...de hoje ao início da Terra”, esta constatação é mais importante do que parece ser. Representa um divisor de águas na forma de atuação da profissão geólogo, mas isso já é um outro assunto...

De um engenheiro para um poeta geólogo: hermeneuticamente científico apaixonante! Faria juz à homenagem em 30 de maio.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos