Tão errado quanto o café da casa do Pedro
Recebi um email hoje cujo assunto era "a forma mais rápida de fazer um lançamento e começar a vender". Eu ri, porque algumas horas antes eu tinha visto um post do Raphael Alves que dizia: "Não escuta música com mais de 3 minutos, filme tem que durar 50 minutos, uma aula 15 minutos, passou de 280 caracteres chama de textão e não lê. A ideia de querer reduzir tudo aos 15s de um story ainda vai nos prejudicar tanto. Isso não é saudável, nem é uma evolução pra melhor." Duas mensagens que são o oposto de tudo o que estou vivendo nesse momento.
Desde o ano passado, fiz uma escolha pelo slow living, ou seja, uma vida desacelerada, que inclusive foi uma das causas da nossa ida para Trancoso. E não dá para viver o slow living na vida pessoal, e no marketing estar na vibe acelerada. A escolha pelo slow marketing foi uma consequência inevitável do slow living. E hoje, lendo as mensagens acima, tive ainda mais certeza de estar fazendo o movimento certo. E tive uma ideia melhor da dimensão que isso tem, considerando o estado do mundo hoje, e a dimensão maior ainda que isso pode tomar.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi o cara que introduziu a metáfora do "líquido" para adjetivar conceitos como amor, tempo, modernidade e outros em suas obras, para descrever a natureza volátil, efêmera e inconstante da sociedade contemporânea. O contexto histórico do surgimento da metáfora foi o pós Segunda Guerra Mundial, um período em que o mundo estava testemunhando uma série de transformações rápidas e profundas (globalização -- assunto sobre o qual nós que já passamos dos 40 fomos obrigados a fazer muita redação e trabalhinho escolar --, avanço tecnológico e mudanças nas estruturas econômicas e sociais. O sentimento de incerteza e instabilidade que rolava foi capturado pelo Bauman no termo "líquido": assim como líquidos mudam de forma facilmente e não mantêm uma estrutura fixa, as relações sociais, as instituições e as normas culturais se tornaram mais fluidas e menos previsíveis.
Eu não sou nenhum Bauman e nem socióloga sou, mas estou há um tempo pensando em qual sociedade estamos vivendo hoje, com uma busca incessante por gratificação imediata e experiências rápidas e fáceis de consumir. E cheguei à conclusão que para além de vivermos em uma sociedade líquida, agora também estamos vivendo em uma "sociedade solúvel". Na minha opinião, uma resposta às várias transformações tecnológicas, culturais e econômicas que aconteceram nas últimas décadas. Na tecnologia, a minha geração viu o nascimento e a explosão da internet e das tecnologias de comunicação, especialmente depois da chegada dos smartphones e das redes sociais, o que transformou radicalmente a forma como consumimos informação e entretenimento. O acesso instantâneo a uma quantidade absurda de conteúdo incentivou a busca por experiências rápidas e imediatamente gratificantes.
Fiz meu primeiro blog em 2001, e escrevi diariamente na internet por 10 anos. Lembro que, em 2001 mesmo, meu blog foi indicado para o prêmio iBest (que também era uma novidade recente), e eu brincava que só tinha ficado no top 10 porque só tinham mesmo 10 blogs no Brasil naquela época. Talvez tenha sido um exagero de sagitariana, mas a verdade é que não era muito mais do que isso. Naquela época, eu tinha entre 5 e 10 mil visitas no meu blog todos os dias (o que era muita coisa, lembra que estamos falando da internet de 23 anos atrás, a sua mãe e a sua avó ainda não estavam lá), e facilmente um post passava das centenas e até milhares de comentários (lembro uma vez em que houve até uma treta com o Leo Jaime -- sim, a internet era tão desértica com bolas de feno rolando que você encontrava comentários de celebridades, artistas e cantores caindo na pancada com gente comum em blogs de pessoas desconhecidas, basicamente ninguém tinha nada melhor para fazer). Eu escrevia muitas vezes textos longos, e os comentários eram igualmente longos, o que fazia com que as pessoas conversassem, trocassem ideias, e até mesmo casamentos e famílias nasceram daquela comunidade.
Com a chegada das redes sociais e o aumento exponencial da produção de conteúdo, começou a economia da atenção: os olhos dos consumidores tornaram-se um recurso escasso e valioso. Os conteúdos foram tendo que ficar cada vez mais curtos e diretos, e ai de você se não conseguir chamar a atenção do seu seguidor em 3 segundos ou menos. Isso foi uma das coisas que me fizeram começar a perder o tesão de criar conteúdo online, mas isso é assunto para outro email.
Junto disso, vieram mudanças culturais. E talvez uma das mais perniciosas de todas seja a cultura da pressa e da eficiência, que promoveu a valorização de experiências rápidas e práticas. A necessidade de otimização do tempo impulsionou a preferência por soluções instantâneas e de fácil consumo. Por isso mesmo estou propondo o termo "solúvel". Como vivemos o tempo todo a um clique de distância de alcançar qualquer coisa, a gratificação imediata se tornou uma regra. A liberação de dopamina, neurotransmissor associado ao prazer e à recompensa, reforça esse comportamento, criando um ciclo de busca contínua por experiências que proporcionem satisfação instantânea.
Em outubro, na minha segunda ida a Trancoso no ano passado para resolver nossa mudança, tive que passar a primeira noite em um chalé na casa de um amigo de uma amiga, um sujeito muito, mas muito gente boa, o Pedro, que se tornou meu amigo. Lembro de acordar no dia seguinte e ir pra cozinha da casa dele pra tomarmos café da manhã juntos e ele aparecer com uma chaleira de água fervendo e um pote de nescafé solúvel.
"Pedro, eu não sei nem como faz isso, cara", eu não conseguia parar de rir. Quem toma nescafé solúvel por livre e espontânea vontade em sua própria casa? O Pedro, que tinha se separado há pouco tempo e não sabia fazer nada na cozinha, e quando eu digo nada -- aliás eu não, porque foi ele mesmo quem disse -- estamos falando de nada mesmo né, porque poucas coisas na cozinha podem ser mais fáceis do que fazer um café, e o Pedro estava falhando miseravelmente nisso.
A verdade que tem me rondado nos últimos meses -- desde que resolvi mudar toda a minha vida para voltar ao slow living -- é que, assim como o café do Pedro naquele dia, as coisas solúveis podem até ser mais rápidas e "eficientes", mas elas são uma grande bosta.
Tudo bem que o excesso de informação disponível online pode ser avassalador, e leva as pessoas a preferirem conteúdos curtos e diretos para serem rapidamente digeridos e compreendidos. Mas os conteúdos curtos e diretos, ao mesmo tempo em que "resolvem" o overload de informação, estão deixando as pessoas cada vez mais burras. E eu confesso que a essa altura desse email eu estou aqui me perguntando se terá alguém ainda comigo, só porque ele está propondo uma reflexão um pouquinho de nada mais densa.
Mas o fato é que eu escolhi o slow living e, com ele, o slow marketing. E, dentre várias outras resoluções baseadas nisso, eu decidi retomar estes emails (quase) diários para você, e muito, muito longos. Porque eu não quero mais ter que resumir meu raciocínio, minhas provocações, minhas histórias, minhas emoções e minha vulnerabilidade a um fucking tweet. Eu sou escritora, e não twiteira, eu quero criar textos longos para você refletir comigo, viajar comigo nas histórias, rir comigo e até mesmo chorar comigo também. Mas essa constante exposição da gente a estímulos digitais tem impactado a nossa capacidade de concentração e paciência, e cada vez mais nos pegamos optando por conteúdos e experiências que exijam menos tempo e esforço cognitivo. Cognitivo esse que está indo pro pau, diga-se de passagem.
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Hoje recebi um elogio lindo de uma amiga muito querida e que além de querida vem a ser um dos grandes nomes do mercado digital. Ela disse: "Eu amo a sua newsletter, você não deveria parar nunca mais". Eu agradeci, e respondi que amava a dela também, uma das poucas se não a única que eu gostava de ler, mas que ela tinha parado de mandar. Sugeri de ela retomar, mas isso virou uma conversa sobre a "utilidade" dos emails. Qual resultado eles teriam no nosso negócio? Eles geram venda, sim ou não? Isso é mensurável como?
Eu respondi o que penso: que devemos fazer pelo prazer, pelo propósito, para compartilhar. Não sei se consegui convencê-la (espero que sim), mas sei que a pressão para ser produtivo e eficiente em todas as áreas da vida acaba levando a gente a preferir soluções rápidas e práticas, e a minimizar o tempo gasto em atividades consideradas "não essenciais".
No mercado digital, o marketing diria: eu consigo vender mais fazendo funis e coisas como "a forma rápida de fazer um lançamento e começar a vender" que está lá mofando na minha caixa de entrada. Mas eu escolhi ir contra esse marketing e voltar para o slow marketing que eu usava lá no começo, voltar a me relacionar com as pessoas no nível profundo que todo bom introvertido gosta. Eu detesto papo aranha, e me dei conta de que toda copy -- por mais bem feita que seja -- é uma espécie de papo aranha, uma enrolação articulada para se chegar em um lugar (e o nome desse lugar você já sabe, é venda). Já eu, com meus e-mails longos, tenho outros objetivos (além do meu próprio prazer e propósito, como já escrevi): quero que a gente se conheça um pouco melhor, quero ler a sua resposta longa, quero responder de volta (sei que estou devendo respostas, mas lembrem que sou uma pobre mãe com filhos de férias), quero desenvolver ideias, quero trocar reflexões com você, quero ouvir histórias de pessoas bem diferentes de mim e ao mesmo tempo tão parecidas.
Mas além do marketing, tenho buscado fazer aos poucos um detox das coisas solúveis da vida. Vou me desconectando do entretenimento solúvel assistindo menos reels, além dos filmes ou séries que são projetados para serem consumidos rapidamente. Também tenho fugido da educação solúvel dos livros e cursos fuleiros e condensados e tenho buscado livros e cursos mais densos que requerem muito mais da minha atenção -- sim, aquela que o tio Zuck quer vender por milhões para gente como eu mesma.
Tenho também preferido uma comunicação menos solúvel, evitando mensagens curtas e instantâneas, como tweets e stories de 15 segundos. Já não é de hoje que tenho postado menos stories, e isso tem sido bom para a minha saúde mental -- e também para a saúde financeira do meu negócio, por incrível que pareça.
Não quero consumir informação solúvel em notícias e artigos que são reduzidos a manchetes ou resumos rápidos, para facilitar o consumo. Não quero relacionamentos solúveis, estou fugindo de interações sociais e relações que são superficiais e transitórias. Pensa aí no quão são solúveis interações como aquelas facilitadas por aplicativos de namoro e redes sociais onde as conexões podem ser feitas e desfeitas rapidamente.
E morar em Trancoso por seis meses me ajudou muito a fazer um detox do consumo solúvel, imediato, onde produtos e serviços são adquiridos com a expectativa de gratificação instantânea, como a entrega em um dia de compras online ou a disponibilidade imediata de streaming de mídia. Como tudo por lá era excessivamente caro, e como eu não precisava de nada porque vivia de biquini ou bem à vontade no calor, fui aos poucos "desmamando" dessa cultura do consumo.
Sei que a nossa sociedade busca o solúvel hoje por conta da gratificação imediata, pela onipresença da tecnologia, pela pressão por produtividade, pelas alterações neuroquímicas, por conta da ansiedade e estresse onde a resposta imediata é um alívio. Enquanto essa abordagem traz benefícios em termos de conveniência e acessibilidade, ela também apresenta desafios significativos, como a superficialidade e a perda de habilidades críticas.
Eu escolhi mais uma vez me retirar na medida do possível desse sistema. Se precisar vender menos porque estou escrevendo demais, abrindo meu coração demais, sendo honesta demais, transparente demais, que seja. Meu propósito nessa carreira nunca foi fazer dinheiro, afinal isso eu já fazia antes. Pretendo seguir fugindo da forma mais rápida de fazer um lançamento e começar a vender.
Com amor,
Paula
Pioneiro do Marketing+BD Jurídico no Brasil // Activator Advantage // Marketing Jurídico // Desenvolvimento de Negócios // Martechs // Mercado Jurídico
5 mPaula, excelente reflexão! Bem na linha do que tenho visto e pensado. Fato é que a terra não é plana, mas o mundo anda raso...
Intriguing perspective on the complexities of our immediate gratification culture and its impact on depth and critical thinking skills.