Trabalho de casa 4.
«O mundo tornou-se uma flor com mil pétalas de escuridão e eu estou dentro do seu perfume como num contacto íntimo.»
D. H. Lawrence, «O Homem Que Morreu», tradução minha, em «Vinte Surpreendentes Histórias de Natal».
A leitura da novela de D. H. Lawrence The Man Who Died fez-me flutuar. Horas, dias, compromissos, problemas, de súbito nada existia: flutuava na luz de cada uma daquelas palavras que, não falando de mim nem da minha vida, me interpelavam, a mim e à minha vida, revelando-me a beleza que resulta da busca da verdade como motor, farol e razão primeira e última da existência. Larguei tudo o que estava a fazer e, durante quinze alucinados dias, mergulhei radicalmente no texto de Lawrence, trazendo-o para a minha língua para melhor o incorporar. Traduzir é muito mais do que transportar as frases de uma língua para a outra; é entrar dentro do sistema rítmico, melódico, sentimental, racional e inconsciente do escritor que se traduz. Quando encontro, numa tradução, frases longas, ritmadas por vírgulas, substituídas por frases curtas separadas por pontos finais, sinto-o como uma traição — ao escritor e ao leitor. Ou quando uma palavra simples aparece substituída por uma metáfora supostamente mais elaborada (Kundera queixou-se de que lhe fizeram isso nas traduções iniciais, e por esse motivo decidiu aprender francês a ponto de o tornar a sua primeira língua, nessa época em que a sua própria língua lhe estava, enquanto escritor publicado, interdita).
A história que D. H. Lawrence conta é a de um Cristo que, não tendo chegado a morrer por ter sido descido da cruz demasiado cedo, decide viver como simples homem essa segunda vida que lhe é oferecida — um homem com direito ao desejo, ao sexo, à paixão e à liberdade. Um homem que percebe que governar a vida dos outros, pretender discipliná-los ou salvá-los, é uma vaidade profundamente estúpida, e que melhor será procurar entendê-los e, acima de tudo, aceitar o esplendor da existência com todas as suas falhas e dores. Este homem renascido começa por ser acolhido por um casal de camponeses que têm um galo preso no pátio — e ao libertar esse galo preso por uma corda, o homem que afinal não tinha morrido começa, também ele, a viver. Encontrará uma mulher que espera um homem desprovido dos estereótipos masculinos — essa afirmação de virilidade que serve de biombo à mesquinhez e à insegurança — e viverá com ela uma intensa aventura erótica. A ideia da novela é interessantíssima, mas o que a torna única é a vitalidade da escrita de D. H. Lawrence, a exactidão e a claridade de cada uma das suas palavras. Todo o texto brilha como um Sol ardente.
A melhor ideia do catolicismo — ou, melhor dito, do cristianismo — parece-me ser, sem dúvida, a de ressurreição, porque é uma ideia intrinsecamente humana. Ao longo das nossas vidas, atravessamos processos de traição, tortura, culpa, morte e renascimento. A ressurreição arreda a culpa e mostra-nos o erro como uma encosta no caminho do conhecimento. Popularizou-se a convicção de que o ser humano é imutável — convicção bastante conveniente aos poderes do mundo, para manter as massas resignadas, mas desmentida pela própria História da Humanidade. A vida muda, a dor transforma-nos mas não tem obrigatoriamente de nos degradar, o amor ilumina-nos embora nem sempre seja visível e nos surja frequentemente sujo e envolto em sangue como um recém-nascido, tropeçamos nas palavras e nos sentimentos, desastrados, atarantados, mas temos força, coragem, determinação e sobretudo imaginação para suportar o imprevisível — que é, afinal de contas, a essência da vida, como neste momento preciso o mundo inteiro, atónito, parece descobrir pela primeira vez. A nossa vida recomeça exactamente todos os dias; a ressurreição está-nos nos genes. Fernando Savater repete que, quando ouve lamúrias sobre o mau estado do mundo contemporâneo, responde: «Por mim, recusar-me-ia a ter nascido antes da invenção da anestesia, que é bastante recente». Lúcida resposta. Aprendamos a viver ressuscitados, porque a morte é certa — e temos a imensa vantagem, sobre todas as outras espécies, de nos sabermos mortais, ou seja, de termos o conhecimento bastante para saborearmos e valorizarmos todos os minutos das nossas vidas. E pertencemos à primeira geração de seres humanos capaz de viver um século inteiro, ou quase.
Inês Pedrosa, 11 de Abril de 2020