Trabalho de casa 4.
Gustave Doré, "Jesus and the Woman of Samaria", in La Grande Bible de Tours, Cassel & Company, 1866.

Trabalho de casa 4.

«O mundo tornou-se uma flor com mil pétalas de escuridão e eu estou dentro do seu perfume como num contacto íntimo.»

D. H. Lawrence, «O Homem Que Morreu», tradução minha, em «Vinte Surpreendentes Histórias de Natal».

A leitura da novela de D. H. Lawrence The Man Who Died fez-me flutuar. Horas, dias, compromissos, problemas, de súbito nada existia: flutuava na luz de cada uma daquelas palavras que, não falando de mim nem da minha vida, me interpelavam, a mim e à minha vida, revelando-me a beleza que resulta da busca da verdade como motor, farol e razão primeira e última da existência. Larguei tudo o que estava a fazer e, durante quinze alucinados dias, mergulhei radicalmente no texto de Lawrence, trazendo-o para a minha língua para melhor o incorporar. Traduzir é muito mais do que transportar as frases de uma língua para a outra; é entrar dentro do sistema rítmico, melódico, sentimental, racional e inconsciente do escritor que se traduz. Quando encontro, numa tradução, frases longas, ritmadas por vírgulas, substituídas por frases curtas separadas por pontos finais, sinto-o como uma traição — ao escritor e ao leitor. Ou quando uma palavra simples aparece substituída por uma metáfora supostamente mais elaborada (Kundera queixou-se de que lhe fizeram isso nas traduções iniciais, e por esse motivo decidiu aprender francês a ponto de o tornar a sua primeira língua, nessa época em que a sua própria língua lhe estava, enquanto escritor publicado, interdita).

A história que D. H. Lawrence conta é a de um Cristo que, não tendo chegado a morrer por ter sido descido da cruz demasiado cedo, decide viver como simples homem essa segunda vida que lhe é oferecida — um homem com direito ao desejo, ao sexo, à paixão e à liberdade. Um homem que percebe que governar a vida dos outros, pretender discipliná-los ou salvá-los, é uma vaidade profundamente estúpida, e que melhor será procurar entendê-los e, acima de tudo, aceitar o esplendor da existência com todas as suas falhas e dores. Este homem renascido começa por ser acolhido por um casal de camponeses que têm um galo preso no pátio — e ao libertar esse galo preso por uma corda, o homem que afinal não tinha morrido começa, também ele, a viver. Encontrará uma mulher que espera um homem desprovido dos estereótipos masculinos — essa afirmação de virilidade que serve de biombo à mesquinhez e à insegurança — e viverá com ela uma intensa aventura erótica. A ideia da novela é interessantíssima, mas o que a torna única é a vitalidade da escrita de D. H. Lawrence, a exactidão e a claridade de cada uma das suas palavras. Todo o texto brilha como um Sol ardente.

A melhor ideia do catolicismo — ou, melhor dito, do cristianismo — parece-me ser, sem dúvida, a de ressurreição, porque é uma ideia intrinsecamente humana. Ao longo das nossas vidas, atravessamos processos de traição, tortura, culpa, morte e renascimento. A ressurreição arreda a culpa e mostra-nos o erro como uma encosta no caminho do conhecimento. Popularizou-se a convicção de que o ser humano é imutável — convicção bastante conveniente aos poderes do mundo, para manter as massas resignadas, mas desmentida pela própria História da Humanidade. A vida muda, a dor transforma-nos mas não tem obrigatoriamente de nos degradar, o amor ilumina-nos embora nem sempre seja visível e nos surja frequentemente sujo e envolto em sangue como um recém-nascido, tropeçamos nas palavras e nos sentimentos, desastrados, atarantados, mas temos força, coragem, determinação e sobretudo imaginação para suportar o imprevisível — que é, afinal de contas, a essência da vida, como neste momento preciso o mundo inteiro, atónito, parece descobrir pela primeira vez. A nossa vida recomeça exactamente todos os dias; a ressurreição está-nos nos genes. Fernando Savater repete que, quando ouve lamúrias sobre o mau estado do mundo contemporâneo, responde: «Por mim, recusar-me-ia a ter nascido antes da invenção da anestesia, que é bastante recente». Lúcida resposta. Aprendamos a viver ressuscitados, porque a morte é certa — e temos a imensa vantagem, sobre todas as outras espécies, de nos sabermos mortais, ou seja, de termos o conhecimento bastante para saborearmos e valorizarmos todos os minutos das nossas vidas. E pertencemos à primeira geração de seres humanos capaz de viver um século inteiro, ou quase.

Inês Pedrosa, 11 de Abril de 2020


Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos