TRANSIÇÃO ENERGÉTICA E A DESCARBONIZAÇÃO DA ECONOMIA
Tem-se falado muito hoje em dia em Transição Energética, na relevância das Energias Renováveis... E para o Brasil, que reconhecidamente tem uma matriz energética limpa e com expressiva participação de energias renováveis e de baixa emissão, o que significa entrar na Transição Energética? O que exatamente está envolvido no esforço para a Transição Energética?
O que é a Transição Energética?
A transição energética é um movimento mundial de profunda transformação de padrões vigentes, sobretudo no consumo de energia. É marcada por uma importante alteração no combustível que move a sociedade e, geralmente, é percebida depois de ter ocorrido.
De acordo com TAVARES (2019), "a história da energia foi marcada pela penetração de sucessivos novos conversores que adicionam quantidades crescentes de energia, com a manutenção ou redução percentual do consumo das demais fontes tradicionais".
A pesquisa realizada por este autor indica que a primeira grande transição energética teria origem a partir da domesticação dos animais de tração e o melhor aproveitamento do fogo. A segunda transição surgiria alguns milênios mais tarde, com a substituição do trabalho animal e humano por moinhos de água e vento. A terceira grande transição energética seria caracterizada pela substituição de equipamentos movidos a força animal por motores, e da substituição da biomassa por combustíveis fósseis.
Desde o final do século XIX, a energia elétrica vem ganhando espaço, a princípio apenas para iluminação e posteriormente, à medida que vencia o obstáculo do oneroso investimento na infraestrutura de distribuição e de inovações tecnológicas (motores elétricos) seu consumo torna-se crescente também nos transportes ferroviários e na indústria... Mas é o petróleo o combustível que se torna predominante desde a segunda metade do século XX.
O uso de combustíveis fósseis vem crescendo substancialmente, primeiro com o carvão, que teve seu pico de consumo em 2014, depois o petróleo, cujo pico provavelmente foi em 2019 e, atualmente, o gás natural, cujo pico está estimado para 2035, de acordo com o relatório de Transição Energética publicado pela DNV (DNV, 2020).
Figura: Energia Primária de Origem Fóssil no Mundo, por Fonte (Fonte: DNV – Energy Transition Outlook, 2020)
Atualmente, o termo Transição Energética indica uma necessidade de fugir da dependência de combustíveis fósseis na geração de energia, impulsionada pelo combate ao aquecimento global e consequentes mudanças climáticas decorrentes do acúmulo de gases geradores do efeito estufa na nossa atmosfera.
As apostas da Transição Energética
Em função dos cenários futuros previstos pelos modelos climáticos, a transição energética que no passado demorou 2 gerações para se implantar, deve se estabelecer em pouco mais de 30 anos – até 2050, de forma a conter o aquecimento global... E dessa vez precisa ser conduzida pela sociedade e suas escolhas, e não uma consequência mercadológica da evolução tecnológica nos conversores de energia.
E este é o tamanho do esforço relacionado à Transição Energética, como se não bastasse a urgência das transformações de usos e costumes, tem também a falta de certeza – vamos fazer a transição do petróleo para que fonte de energia?
A aposta é nas energias renováveis. Mas a geração de energia renovável por si só não é suficiente para garantir a diminuição das emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE) necessária para conter o aquecimento global.
Para conter as emissões de GEE, é preciso diminuir substancialmente o uso de combustíveis fósseis, e para isso, precisamos de uma alternativa tecnológica de energia em todos os setores, nas residências, construção civil, nos transportes, edifícios e indústrias. Nesse caso, a aposta é na energia elétrica, ou seja, na eletrificação do consumo.
Para garantir que a eletrificação da economia contribua para a diminuição das emissões de combustíveis fósseis, a matriz energética deve ter uma participação significativa de energias limpas, como é o caso do Brasil.
Com o crescimento da população mundial, é crescente a demanda por energia, e a pressão sobre novos sistemas de geração e transmissão de energia é cada vez maior. Além disso, com o passar dos anos e com o avanço tecnológico, temos oportunidade de incremento no aproveitamento energético em vários setores da economia. Para realizar essa oportunidade, novos investimentos nos sistemas elétricos existentes são necessários. Um aumento na eficiência energética também é uma das apostas da transição energética.
“A eletrificação, associada à penetração de renováveis e ao aumento da eficiência energética na matriz global poderá garantir mais de 90% das necessárias reduções de emissões relacionadas à energia, de acordo com a Agência Internacional para as Energias Renováveis (2019). ” (Instituto E+ Transição Energética, Dezembro 2020)
O que significa para o Brasil, que já tem sua matriz limpa, entrar na Transição Energética?
O processo de Transição energética vai além de limpar a matriz. Sim, pressupõe que a matriz energética brasileira mantenha um mix de renováveis em patamar alto, mas o processo considera um engajamento do consumidor final. Para que isso seja possível, é preciso infraestrutura de base que permita o uso de combustível alternativo.
No caso do Brasil, de acordo com nosso Plano Decenal de Expansão de Energia PDE2030, apesar da expansão de fontes renováveis para a geração de energia elétrica, do crescimento do uso de biocombustíveis e do aumento das medidas de eficiência energética, chegaremos a 2030 com um aumento nas emissões de GEE do setor elétrico de 53% desde 2005, sobretudo devido ao consumo de energia pelo transporte.
No inventário de emissões brasileiro, o transporte é o principal emissor de GEEs, com cerca de 50% de contribuição.
Figura: Evolução da participação setorial nas emissões de GEE pela produção e uso de energia (Fonte: EPE - Empresa de Pesquisa Energética, 2020)
Considera-se a eletrificação a base da descarbonização. A transição Energética dá um salto quando viabilizada a adoção de modais de transporte elétrico.
Até podermos viabilizar alternativas como a eletrificação de ônibus e caminhões, podemos avançar com o uso de biocombustíveis no transporte rodoviário. Os biocombustíveis (bioetanol e biodiesel, por exemplo) são gerados a partir de matéria orgânica de origem vegetal (cana-de-açúcar, óleos vegetais ou gorduras animais) e podem substituir parcial ou totalmente, os combustíveis derivados de petróleo e gás natural em motores a combustão na geração de energia. O diesel B12 vendido no Brasil hoje é uma mistura de 12% de biodiesel e 88% de diesel.
“Usar biocombustíveis em um motor ainda produz CO2, mas como derivam de biomassa – que absorveu CO2 à medida que crescia (como planta viva) – o CO2 liberado na combustão é “compensado” pelo que foi absorvido anteriormente” (Instituto E+ Transição Energética, Dezembro 2020).
O papel do setor privado na Transição Energética e a Modernização do Setor Elétrico
Os investimentos necessários para completar a Transição Energética são expressivos, e os benefícios dessa transformação são difusos, e esse é um dos principais desafios para a implementação e aceleração dessa transição. Uma solução para esse desafio está na Valoração de Benefícios da Transição Energética. Por outro ponto de vista, também é possível justificar o investimento na transição energética pela valoração da perda das oportunidades para o Brasil de não acompanhar uma tendência mundial.
As grandes empresas multinacionais e investidores estrangeiros tem um papel relevante na Transição Energética aqui no Brasil.
Originalmente, o setor elétrico brasileiro era integralmente baseado no poder estatal, tanto a geração da energia, a transmissão e distribuição, com modelos de comercialização da energia 100% no Ambiente Regulado (AR). Aos poucos, com a abertura da economia iniciada em 1995, o setor foi atraindo uma crescente participação do setor privado, tanto na geração, na transmissão, distribuição e comercialização.
Hoje, é crescente a migração de consumidores de grande porte para o Ambiente de Contratação Livre (ACL), onde é possível comprar energia elétrica diretamente de geradores, negociando preços e condições por contratos de Compra e Venda de Energia (em inglês PPA – Power Purchase Agreement).
Para grandes indústrias poderem cumprir as metas de neutralizar emissões de carbono, as comercializadoras de energia buscam criar um portfólio de Carbon Free Energy (CFE) – usinas de geração de energia sem emissão de carbono, e desenham soluções e arranjos para atender à necessidade específica do consumidor no Mercado Livre. Entram nessa equação um diagnóstico das necessidades energéticas, a digitalização das redes de distribuição (smart grid), gestão pelo lado da demanda, curva de consumo com o requisito CFE.
A digitalização da rede e a medição inteligente aumentam a consciência do uso de energia, com isso, aumenta a eficiência do consumo.
Com toda essa modernização tecnológica, o marco regulatório do setor está sofrendo importantes alterações no sentido da descentralização da geração (Geração Distribuída), da gestão da energia pelo lado da demanda com o avanço na digitalização das redes de distribuição e, no futuro, da liberdade de escolha por parte do consumidor pelo fornecedor de sua energia contratada.
Qual o papel do gás e na Transição Energética?
Considerando que o gás natural também é um combustível fóssil, a transição energética pressupõe sua substituição e/ou diminuição do seu consumo. No entanto, por ser, dentre os combustíveis fósseis, o que menos emite GEE, pode ter um papel relevante no processo de transição energética.
A transição energética pressupõe a eletrificação da energia e uma matriz com base nas energias renováveis, de forma que, para completar a transição energética, é importante considerar o amplo acesso à energia elétrica.
No caso do Brasil, a universalização da energia está bem avançada, e populações isoladas não chegam a 1% da nossa demanda. Nesses casos, essas comunidades ainda fazem uso de gerador a diesel, e térmicas a gás já são uma solução melhor em termos de emissões de GEE. O acesso a tecnologias de armazenamento pode mudar essa realidade, e sistemas de geração fotovoltaica podem se tornar uma melhor solução em termos ambientais, uma vez que se tornem viáveis financeiramente.
Além disso, o gás tem sua relevância na segurança operacional do Sistema Interligado Nacional – SIN, com um aumento na participação de fontes intermitentes de geração de energia, como a eólica e a solar.
O setor de transporte também pode usar o gás como substituto do diesel com menores transformações tecnológicas quando comparadas às transformações envolvidas na eletrificação deste setor, e consequentemente com menores investimentos a curto prazo em infraestrutura, e com isso, diminuir as emissões de CO2 do setor.
Enfim... a Descarbonização da Economia
Finalmente, o avanço da transição energética contribui para a descarbonização da economia, que por sua vez, é um processo que vai além da descarbonização da matriz de energia, e passa pela descarbonização da cadeia de valor, dos usos de energia. Significa levar o conceito da transição energética até o dia a dia do consumidor final.
Para descarbonizar a economia, precisamos de Sistemas de Geração de Energia Limpa no Mercado Livre e para transição energética chegar ao consumidor final, a modernização do setor elétrico precisa chegar ao estágio de cada consumidor poder escolher de quem compra sua energia. E para garantir que a sustentabilidade venha junto com a modernização do setor elétrico, obrigatoriamente as energias renováveis precisam ser economicamente competitivas.
Outro ponto de vista é que as energias mais poluentes devem considerar em seu custo, o valor das externalidades. Qual é o preço do carbono emitido? O debate a respeito da precificação do carbono e o Mercado de Carbono em si tem sido frequente e pode ser o caminho adotado para viabilizar a transição energética.
A EPE publicou em dezembro de 2020 uma nota técnica a respeito da precificação de carbono. Em teoria, “a precificação é derivada do princípio poluidor pagador e tem como um dos objetivos impulsionar a diminuição das emissões de carbono por meio da reflexão das mesmas nos custos dos produtos e serviços” (EPE - Empresa de Pesquisa Energética, 2020).
Levando em consideração que já entramos na transição energética partindo de uma matriz limpa e renovável, a competitividade do Brasil aumenta na adoção de uma economia de baixo carbono, num mercado em que produtos passam a ser taxados com base na sua emissão de carbono.
Conclusões
A transição energética é uma tendência mundial, impulsionada pelo combate ao aquecimento global e indica uma necessidade de fugir da dependência de combustíveis fósseis na obtenção de energia. Traz consigo a urgência das transformações de usos e costumes, e precisa ser conduzida pela sociedade e suas escolhas nos próximos 30 anos.
A transformação dos sistemas energéticos depende de três pilares inter-relacionados – fontes de energia limpas e renováveis, constantes esforços na melhoria da eficiência energética e crescente eletrificação do consumo nos diversos setores (IRENA, 2019).
Os investimentos necessários para completar a Transição Energética são expressivos, e a discussão sobre a modernização do marco regulatório do sistema elétrico brasileiro é necessária (e tem acontecido) para permitir a atuação do setor privado nesse caminho.
Economistas defendem a valoração de benefícios da Transição Energética e a valoração da perda das oportunidades para o Brasil de não realizar a Transição Energética como ferramentas para demonstrar sua relevância e ajudar a implementá-la. Outro ponto de vista é que as energias mais poluentes devem considerar em seu custo o valor das externalidades. Qual é o preço do carbono emitido?
Assim, o Mercado de Carbono é a principal ferramenta mundialmente defendida para finalmente implementar a Transição Energética.
Para o Brasil, apesar de todos os desafios relacionados à Transição Energética, não podemos perder de vista que levamos vantagem nessa aposta. Além de termos um sistema elétrico consolidado e com forte participação das energias renováveis, dispomos de abundância de recursos renováveis ainda a explorar.
A competitividade do Brasil aumenta na adoção de uma economia de baixo carbono.
Referências
DNV. (2020). Energy Transition Outlook.
EPE - Empresa de Pesquisa Energética. (2020). Plano Decenal de Expansão de Energia 2030.
EPE - Empresa de Pesquisa Energética. (2020). Precificação de Carbono: Riscos e Oportunidades para o Brasil. Rio de Janeiro.
Instituto E+ Transição Energética. (Dezembro 2020). Manual de Termos e Conceitos - Transição Energética. Rio de Janeiro.
IRENA. (2019). Transforming the Energy System - And Holding the Line on Rising Global Temperatures. Abu Dhabi: International Renewable Energy Agency.
TAVARES, F. B. (2019). Política Energética Em Um Contexto De Transição: A Construção De Um Regime De Baixo Carbono. Rio de Janeiro: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO.