"Trinta e Nove"​, o k-drama que diz que nos achamos velhas demais até algo indicar que somos jovens demais.

"Trinta e Nove", o k-drama que diz que nos achamos velhas demais até algo indicar que somos jovens demais.

Há pouco tempo fomos surpreendidos pela paixão dos coreanos pelo pagode brasileiro. Paixão essa tão avassaladora a ponto de terem criado o “k-pagode”, movimento de bandas da Coreia do Sul que fazem covers dos nossos sambas. Ao assistir performances da "Tell a Tale", principal banda do gênero, é intrigante constatar que, mesmo sendo tão culturalmente distintos, eles captaram tão bem a essência da nossa sofrência. Do jeito deles, claro, mas captaram. Eles são tão fascinados pela nossa música que recentemente viralizou o vídeo do embaixador a Coréia do Sul no Brasil Lim Ki-Mo  cantando 'Evidências', de Chitãozinho e Xororó, um clássico dos nossos karaokês.

Essa mistura  de sucesso do Brasil com a Coreia, pode ter uma ligação especial:  "drama" é algo que os coreanos fazem muito bem. Se por um lado eles importaram e se divertem com algo tão nosso, por outro nós também somos interessados pela forma que eles desenvolvem seus dramas na arte, em especial no audiovisual.  Não só nós brasileiros. O mundo inteiro já abraçou o "k-drama", como são conhecidas as telenovelas e minisséries coreanas. A prova disso é a quantidade de opções do gênero disponíveis nas plataformas de streaming. São dezenas de filmes, séries e minisséries do país asiático ao dispor de fãs e daqueles que se interessam em consumir outras produções fora do eixo Estados Unidos e Europa.

Os dramas coreanos são inspirados pelas novelas japonesas da década de 1950, os originais "doramas" (que nada mais é que a pronúncia dos japoneses para a palavra "drama", do inglês). São muito diferentes da nossa novela brasileira. Os doramas, geralmente, possuem em média entre 12 a 24 episódios que são liberados apenas um por semana, mais semelhante às séries, mas sem a promessa de várias temporadas. Cada dorama possui início, meio e fim, as histórias são fechadinhas sem deixar pontas em aberto para serem respondidas numa provável continuação.

O estilo dorama de contar histórias influenciou toda produção audiovisual asiática. Logo, além dos k-dramas (doramas coreanos), existem também os C-dramas (doramas chineses) e os TW-dramas (doramas de Taiwan). Todos eles possuem algo muito comum: a narrativa focada em romances ou com em relacionamentos no geral, tudo com muita intensidade, muito choro, muita entrega… ou seja, muito drama. Drama até não acabar mais.

E se é de drama que os dorameiros e dorameiras gostam (sim, existe um termo pra designar fãs de doramas), é drama que a Coreia entrega cada vez mais e que a Netflix distribui um novo a cada semana.

Um dos mais recentes é "Trinta e Nove", lançado no final de março na plataforma. Dirigido pelo experiente Kim Sang-ho e tendo a JTBC, rede de televisão sul-coreana como emissora original, a série gira em torno da vida de três amigas que se conheceram no ensino médio e que estão prestes a completar 40 anos. 

Imagem de três amigas, duas se abraçando e uma olhando. Todas estão sentadas


Solteiras e sem filhos, em meio às várias crises existenciais que a idade traz para as personagens,  Cha Mi-jo (Son Ye-jin), Jeong Chan-young (Jeon Mi-do) e Joo-hee (Kim Ji-hyun) já revelam nos primeiros minutos do primeiro episódio em qual momento da vida estão: enquanto tentam se distrair numa noite de tédio dentro do apartamento, revelam que não gostam de ir a casamentos e festa de crianças, mas amam ir a funerais, já que já possuem 39 anos. 

Logo nos deparamos, na narrativa da série, com uma verdade inconveniente que a sociedade ageísta costuma esconder, especialmente quando se trata das mulheres: nos obrigam a acreditar que somos velhas demais para determinadas coisas e nos tornamos mulheres  frustradas porque não respondemos às expectativas do que se espera ter conquistado nessa idade. 

No entanto, uma descoberta trágica as forçam a olhar a vida de outra maneira: uma delas descobre uma doença terminal. Estar cara a cara com a possibilidade de morte revela que não, elas não estão velhas demais e ainda acreditam que têm muito a viver, especialmente juntas. 

O medo da perda e o desejo de viver cada minuto como se fosse o último, episódio por episódio, vai se desenrolando e invadindo a vida dos personagens adjacentes e o drama começa a se alastrar na vida de todos que são próximos às amigas. Daí surgem os conflitos que trazem à tona questões sobre paternidade, relações conjugais,  amizade, relacionamento entre irmãos, relação com profissão e dinheiro e quando surgem também segredos a serem revelados e histórias sem desfechos que marcam o passado das protagonistas.

No entanto, são nas evocações à maternidade e nas conexões de cuidado entre as mulheres que "Trinta e Nove" expõe uma sensibilidade fascinante, humanizando o "ser mãe". A série traz uma variedade de tipos de mãe em dimensões diversas. Tem a mãe de  adoção, a mãe que abandona, a mãe que morre, a mãe que cuida, a mãe que precisa ser cuidada, a mãe que é dona de orfanato, a mãe que faz tudo pela cria, a mãe que não gosta do filho, a mãe solo, a mãe casada, a mãe mais autoritária, a mãe que concede maior independência.

O maternar extrapola o "ser mãe" a partir do momento que ele faz parte das dinâmicas das relações de todas as mulheres da série, especialmente as sem filhos, como é o caso das 3 protagonistas. As mulheres se cuidam em "Trinta e Nove". Elas se protegem e, mesmo nas situações mais adversas, abrem mão de si mesmas para atender a outra.

Não seria ousado demais então dizer que os homens são coadjuvantes nesse sentido. E também não seria atrevido demais afirmar que este k-drama concebido pela escritora Yoo Young Ah é também sobre cuidado entre mulheres.

Imagem de 3 casais hetero olhando por um vidro. Os homens estão atrás e as mulheres na frente

Para a cultura coreana existe uma outra forma também de cuidado que é representada muito bem pelo dorama: a comida. Não são poucas as cenas em restaurantes ou com personagens sentados à mesa compartilhando refeições.  O alimento aparece desde as conversas mais afetuosas até as mais conflitantes, nos instantes de celebração, nas conversas cotidianas, como cura, como recompensa e como presente. 

Para os coreanos, comida é remédio, é conforto. Existe a tradição milenar de longos períodos na preparação de alimentos e banquetes em datas especiais. O alimento está presente onde estão presentes pessoas se relacionando.

O cuidado faz parte das narrativas da trama, mas também é demonstrado com o espectador de forma delicada e sensível através da Fotografia. "Trinta e Nove" se passa em Seul, capital do país, que abriga os maiores arranha-céus do mundo e alguns dos prédios milenares mais antigos, tudo dividindo o mesmo espaço. Grandes painéis eletrônicos em prédios se mesclam às paisagens de parques tranquilos e casas tradicionais. Passeamos também por lugarejos satélites da capital, onde somos apresentados a construções mais clássicas e simples, com estilo mais pacato, diferente da correria da capital. O dorama faz um match entre o analógico e a tecnologia, convivendo em harmonia no cotidiano do país. O espectador é transportado para esses ambientes que muitas vezes deixam os personagens da série em segundo plano. 

É curioso, (e delicioso), observar a escolha cuidadosa de ângulos quando há intenção de colocar o espectador como parte  atuante da cena ao mesmo tempo e no mesmo momento, trocar de posição transferindo-o para o lugar de observador. Esse jogo de edição nos enquadramentos nos jogam pra dentro e pra fora da cena nos momentos mais tensos da trama, proporcionando diferentes experiências e sentimentos. 

Por fim, mas não menos importante: as três atrizes protagonistas possuíam, durante as filmagens, trinta e nove anos, a idade das suas personagens. Esse fato revela não só cuidado, mas também honestidade com quem assiste, especialmente numa indústria que costuma colocar atores mais jovens para interpretarem pessoas mais velhas e vice-versa. Mais uma vez, é constatado como os coreanos são de fato detalhistas e francos com as definições que fazem.

Importante destacar a escolha poderosa do casting, com destaque para as três protagonistas. Son Ye-jin tem um currículo extenso, estrelando dezenas de outros k-dramas como o Crashing Landing On You, com o qual foi indicada ao prêmio de melhor de atriz de TV pelo Baeksang Arts Awards (premiação sul-coreana realizada para premiar os destaques da indústria de entretenimento). Com Something In The Rain venceu como Atriz Coreana Excepcional pela Seoul International Drama Awards. Son Ye-jin tem um histórico expressivo também no cinema, onde já concorreu e ganhou diversas outras premiações. 

Já Jeon Mi-do não possui grande experiência do cinema ou na TV, mas acumula grande feitos no Teatro, especialmente em Musicais (como atriz e cantora),  em Gravação de Elenco e Trilha Sonora de Televisão, trabalhos que também receberam muitas indicações e reconhecimentos. Não obstante, Jeon Mi-do interpreta em "Trinta e Nove" uma atriz e professora de Teatro. 

Das três, Kim Ji-hyun tem o menor histórico de trabalhos, mas esteve em séries de TV aclamadas como Backstreet Rookie, Hometown Cha-Cha-Cha e Artificial City. Também incorporou Velma Kelly na versão coreana do famoso musical Chicago, da Broadway.

Dos famosos K-dramas, e filmes como Parasita, premiado internacionalmente, e séries como Round 6, que causam frisson em pessoas de todas as idades no mundo inteiro, a produção de audiovisual na Coreia do Sul não para. Independente do gênero, a sensibilidade, a intensidade e o olhar excepcional abraçam até aqueles que ainda não se consideram fãs da cultura pop do país asiático. 

É como o nosso pagode que eles tanto amam. Difícil não ficar completamente envolvido em drama depois que dá o play.


 Resenha para disciplina de Jornalismo Cultural. Curso: Mídia, Informação Cultura |  Celacc- USP.

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