Trump: o vilão que amamos odiar
Houve um tempo em que a realidade parecia sólida, palpável, dimensionável. As narrativas refletiam isto e, ao mesmo tempo, alimentavam essa visão do mundo.
Uma visão é uma visão, não é a realidade. Exemplo: uma miragem existe e não existe. Também assim é a noção de tempo, uma mera convenção. Passado é memória. Futuro é uma questão de fé. Presente é o que é e, em simultâneo, já não é.
Abstrações como essas são percebidas como verdadeiras por que a humanidade precisa de segurança, de previsibilidade. Porém, não há nada mais incontrolável, incoerente, imprevisível do que a própria humanidade. Teimamos em não acreditar nisso.
Se começo esse texto com o verbo no pretérito (“Houve em tempo em que...”) é para sublinhar que de sólida a nossa realidade não tem nada.
Os tempos atuais são líquidos, digitais, imateriais. É natural que os personagens que protagonizam as narrativas que vivemos também assim sejam.
O fenómeno Trump é uma excelente demonstração dessa tese, um verdadeiro caso de estudo. Trump é a negação da solidez, do estabelecido, do bem senso.
O debate entre Trump e Hilary esta semana trouxe mais uma acha para a fogueira. Quando Trump recusa-se a ratificar a ideia de que as eleições americanas são livres e que o resultado das urnas é soberano o que ele quer dizer é mais do que isto, ela está a renegar uma espécie de lei da gravidade. Não há nada mais heróico do que ir contra tudo e contra todos. Esse é só mais um passo de uma longa caminhada. É só mais uma camada de cebola que foi descascada.
O que o torna o personagem Trump irresistível para muitos é o arquétipo que representa. Trump é Dom Quixote. Trump é Batman. Trump é James Dean. Trump é um rebelde sem causa.
Por mais que deteste a figura, compreendo como ele chegou até ali. Trump é Sarah Palin. Trump é Mickey Rourke. Trump é Lindsay Lohan. Trump é Paris Hilton.
Trump é errado, é boquirroto, é histriónico, é malvado, é bully, é tarado sexual, é racista, é machista, é misógino é... (preencha com um defeito de sua preferência).
Trump tem milhões de eleitores e admiradores pelo mundo (inclusive em Portugal) por ser um homem do seu tempo, alguém com que muitos podem se identificar.
Em storytelling um vilão para ser bom não basta ser mau, ele precisa de uma motivação para as suas maldades e algum poder para as executar.
Motivação e poder também são as matérias que compõe os heróis. Para muitos, Trump não é apenas o mau da fita. É o que melhor representa os seus ideais de vida e de mundo.
Ou como diria o meu Tio Olavo, citando Woody Allen: “As pessoas boas dormem muito melhor à noite do que as pessoas más. Claro, durante o dia as pessoas más se divertem mais”.
Edson Athayde é CEO da FCB Lisboa e storyteller. Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Dinheiro Vivo: https://www.dinheirovivo.pt/opiniao/trump-o-vilao-que-amamos-odiar/