Uma palavrinha sobre letramento
O termo letramento começou a ser utilizado no Brasil nos anos 1980, especialmente em círculos que tratavam do ensino inicial da língua materna, com o sentido de conhecimento sobre usos sociais da escrita. Por essa razão, letramento e alfabetização ficaram muito relacionados, não por serem sinônimos – se considerada a alfabetização no sentido estrito, como processo de compreensão da correspondência letra-som –, e sim por dizerem respeito à escrita.
Luiz Antônio Marcuschi* apresenta uma definição que se aproxima desse sentido de conhecimento sobre os usos sociais da escrita, predominante na época:
O letramento […] envolve as mais diversas práticas da escrita (nas suas variadas formas) na sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita – tal como o indivíduo que é analfabeto […], mas identifica o valor do dinheiro, identifica o ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas etc., mas não escreve cartas nem lê jornal regularmente – até uma apropriação profunda, como no caso do indivíduo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemática ou escreve romances.
Com o tempo, a palavra letramento foi adquirindo outros sentidos, passando a nomear também o uso do conhecimento da língua para ler e escrever adequadamente. Esse sentido é diferente do que atribui Marcuschi (e outros autores), pois diz respeito a níveis mais elaborados de utilização da escrita – e não a práticas que podem revelar também uma apropriação mínima, como ele exemplifica.
E o conceito migrou também para outras áreas curriculares além da Língua Portuguesa, passando a ser comum hoje a expressão letramento nas diferentes áreas. Nesse caso, adquiriu dois sentidos diferentes: de uso do conhecimento relacionado à cada disciplina e de uso adequado do conhecimento da língua nas situações em que é preciso ler e escrever nas diferentes disciplinas. Ou seja, como habilidade de utilizar o conhecimento relacionado especificamente ao componente curricular ou como habilidade progressiva de leitura e escrita.
Existem outros sentidos ainda – como letramento digital, letramento científico etc. – que dizem respeito a âmbitos que extrapolam a escrita, e também o currículo escolar, referindo-se ao uso adequado do conhecimento em cada caso.
A palavra foi ganhando uma perspectiva plural, e hoje já se fala em letramentos, para dar conta dos diferentes processos e práticas de letramento. Mas, a despeito das variações, os sentidos parecem ter ficado mais identificados com a ideia de uso proficiente, diferente do conceito que conhecemos na década de 1980 – que não dizia respeito à escola nem à proficiência no uso da escrita e de outros saberes – e que foi muito útil para expandir nossa compreensão das questões envolvidas na aprendizagem da escrita.
Não será demais, portanto, ao falar de letramento, explicitar do que exatamente se está falando, para evitar incompreensões desnecessárias, que em nada contribuem com o diálogo sobre temas que nos são tão caros.
Rosaura Soligo
* Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 8. Ed. São Paulo: Cortez, 2007.
=> A ideia de escrever este texto surgiu quando, em 2015, a Revista Educação publicou a matéria Entenda por que o letramento precoce pode ser prejudicial, cujo título revela um erro conceitual grave se considerarmos que o letramento está relacionado ao conhecimento sobre usos sociais da escrita e ao uso possível (mínimo que seja) do conhecimento sobre a escrita. Desse ponto de vista, a expressão “letramento precoce” é a afirmação de um equívoco, a espalhar mal entendidos, porque jamais será precoce o conhecimento sobre usos sociais da escrita assim como jamais será precoce o uso, possível a cada um, do conhecimento sobre a escrita. Uma criança de três anos, que sabe que os livros são portadores de histórias e que ao manuseá-lo passa o dedinho da esquerda para a direita, é uma criança letrada. Da mesma forma é letrado o analfabeto a que Luiz Antônio Marcuschi se refere. Cada qual apresenta o nível de letramento que lhe foi possível até então.