A VÓ VAI MORRER

Era por volta das 19h do início da segunda quinzena de julho de 2003. Eu estava em casa, vestia um casaco de nylon cinza estampado por dentro, quente o suficiente para suprir o frio daquela noite que se iniciava no inverno litorâneo de Tramandaí, no Rio Grande do Sul. Tinha nove anos, cursava a quarta série do fundamental e, àquele horário, já tinha passado por um longo dia de atividades escolares. Meus pais haviam encerrado suas jornadas de trabalho e se aprontavam para sair.

- Vamos jantar no restaurante do teu dindo, Bianca? – convidou o meu pai.

O restaurante do meu dindo Alaerte chamava Mar Azul, ficava num cantinho bonito às margens do Rio Tramandaí, mas situado na Barra de Imbé, município vizinho. Na verdade, o Mar Azul existe até hoje, com mesmo nome, no mesmo lugar e liderado pelas mesmas pessoas. Nós chegamos com nosso Escort vermelho 96, apelidado carinhosamente de “tomate”. Estacionamos em frente ao rio e, sentindo o frio úmido e cortante do inverno na praia, nos encaminhamos rapidamente para o interior do restaurante.

Ao entrar no estabelecimento, o cheiro de frutos do mar tomou conta de nossos olfatos. Olhamos para os funcionários, que trabalhavam com sorrisos cansados, mas estampados, aparentemente felizes. Eram irmãos do meu dindo, que nos cumprimentaram com acenos de quem já nos conhecia. Infelizmente meu aceno de volta a eles não foi caloroso à altura.

Não sei exatamente como meus pais lidavam com aquela situação. Talvez preferissem seguir nossas vidas como se nada estivesse acontecendo, mas no fundo eu sabia que nós três passávamos por dias difíceis.

Pedimos nosso jantar, as violinhas complementavam. Durante quase toda a refeição, fiquei isolada em um silêncio ensurdecedor, dando espaço apenas ao barulho dos talheres. Eu preferia não falar nada, talvez mesmo porque não conseguisse. Talvez, se o fizesse, caísse num choro profundo e sem fim em um local público e conhecido. Até que meu pai levantou-se e foi ao caixa pagar a conta.

Olhei para os olhos da minha mãe, que também olhava atenta aos meus. Esperei que ela me dissesse alguma coisa, eu realmente não tinha condições de falar nada, e ela viu isso em mim.

- Bi, a vó tá indo. Ela tá muito doente, não vai voltar do hospital.

- Como assim, mãe? - questionei, mesmo sabendo o que ela queria me dizer.

- A vó vai morrer.

Pronto. Àquela altura, eu já não tinha forças para segurar minha máscara durona. Sabia, ou melhor, sentia que minha vó estava em seus últimos dias, mas ainda não tinha tido coragem de conversar sobre aquilo com ninguém, e ninguém também havia tido coragem de abordar aquele assunto comigo. Olhei para minha mãe, com os olhos cheios de lágrima, e respondi em um choro silencioso, ali mesmo, prostrada à mesa do jantar.

Talvez este tenha sido um dos momentos mais difíceis de todos os meus quase 26 anos de vida. Eu e minha avó morávamos juntas, dividíamos o mesmo quarto, rezávamos um terço todas as noites antes de dormir. Juntas. Sempre juntas. Ela foi mãe de nove filhos, avó de muitos netos, mas foi também minha por grande parte da minha infância. Minha mãe e minha vó. Me chamava de "meu tesouro". Foi, sem dúvidas, a pessoa mais afetuosa e carinhosa que me teve nos braços quando ainda criança. Curou minhas dores, acalentou meu sono, me alimentou, me cuidou e me chamou até quando não tinha mais consciência para isso. Devo a ela metade do que fui, metade do que sou e metade do que ainda serei em vida.

Minha vó Noely faleceu em função de um câncer nos rins em 30 de julho de 2003. Hoje ela vive em meus sonhos e em meus pensamentos. Depois de todos esses anos, não tenho nenhuma dúvida sobre a morte não ser suficiente para afastar aquilo que permanece vivo e presente dentro do coração: o amor é maior.

Eduarda Endler

Jornalista especialista em estratégia e conteúdo | Doutoranda em Comunicação | Sócia Hermanas Comunicação

5 a

Amei <3 Tu é uma grande jornalista e escritora!

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