Vaidade das Instituições: O Purgatório de Direitos e o Afogamento do Judiciário

Vaidade das Instituições: O Purgatório de Direitos e o Afogamento do Judiciário

O Processo Administrativo é por sua origem, diferente do Processo Judicial, naquele o Poder Público figura como parte e juiz ao mesmo tempo, criando desde então uma nulidade inamovível e um risco muito grande aos direitos do administrado caso seja malconduzido.

Muitas vezes cidadãos se veem obrigados a pleitear algum direito perante os labirintos burocráticos dos instrumentos da Administração Pública, como Agências Reguladoras, Autarquias, Órgãos como Polícia Federal e Receita Federal do Brasil, Prefeituras, etc.

Todos nós seguramente já tivemos que enfrentar estes órgãos e seus ritos pantomímicos infindáveis para garantir o exercício regular de variados direitos garantidos em Lei. No entanto, na grande maioria das vezes o direito buscado é negado sem qualquer motivação ou fundamentação idônea.

Neste ponto vale lembrar a advertência do saudoso Geraldo Ataliba, citado pela Ministra Carmen Lúcia por ocasião do seu voto na ADI-MC 3831/DF: “O Brasil é um país onde se cumpre portaria de delegado regional, mas não se cumpre a Constituição.”.

O entendimento exarado pela autoridade administrativa de piso está vinculado ao entendimento de seu superior hierárquico que, no mais das vezes, é materializado por Portarias, Instruções Normativas, Circulares, etc.

Ou seja, o julgador de primeira instância tem duas opções: seguir a regra da casa, por mais que entenda ser uma inovação destrelada do princípio da reserva legal ou, julgar como os chefes mandam.

No primeiro caso, a decisão é reformada sem que haja motivação digna, já no segundo, a decisão é mantida por seus próprios fundamentos, novamente sem que haja análise trazido pelo administrado.

Ademais, partindo da premissa de que, com a evolução do processo administrativo em todo o país, o poder judiciário também poderá evoluir, haja vista que, com decisões administrativas sérias, bem fundamentadas, proferidas por agente competente, observados os princípios comezinhos de Direito, os administrados se aventurarão menos no judiciário na tentativa de reverter tais decisões.

Neste sentido expõe Egon Bockmann Moreira:

Acresça-se que o racional funcionamento do processo administrativo certamente resultará em alívio para o Poder Judiciário. Se o particular vir seus direitos efetivamente protegidos na chamada “esfera administrativa”, independentemente do resultado concreto da atividade, sentir-se-á menos incitado a recorrer aventurosamente ao órgão jurisdicional (...) Além disso, da escorreita e bem-fundamentada decisão administrativa advirão redução e simplificação de lides eu envolvam a Administração Pública – quer pelo indeferimento de ordens liminares, quer devido à multiplicação dos julgamentos conforme o estado do feito.

Ressalte-se que o processo administrativo foi criado para combater os abusos e arbitrariedades da própria administração, o que deve ser olhado e levado com mais cuidado ainda, haja vista o grande poder concentrado nas mãos desta, pois exerce os papeis ativo e passivo ao mesmo tempo.

Por meio dos processos administrativos o Poder Público poderá contratar, cassar, demitir, criar cargos, punir administrados, servidores, etc. Verifica-se a abrangência e importância do processo administrativo na sociedade e, juntamente, o prejuízo que poderá acarretar caso seja conduzido em desacordo com a legalidade.

Nestes termos, o condutor do processo administrativo deverá levar o feito da forma mais isenta possível, buscando a igualdade entre as partes para que se crie, ao menos, um ambiente não só de igualdade formal, mas material, entre os interessados.

Como exemplo, pode-se verificar que a paridade de armas tão buscada no processo penal, no processo administrativo fica ainda mais longínqua tendo em vista que aquele que conduz o feito, muitas vezes, também nele poderá ser interessado. 

Neste sentido, vale destacar a lição de Sérgio Ferraz de Abreu em sua obra Princípios de Direito Administrativo . Vejamos:

No processo administrativo, o Estado é, ao mesmo tempo, parte e juiz, evidenciando, de plano, uma desigualdade fundamental. Mas, essa inamovível desigualdade deve ser compensada por uma atuação a mais isenta possível na condução do processo, tendo como norte a igualdade entre as partes. O processo administrativo, obviamente, não pode ser uma pantomima, um ritual sem conteúdo ou, pior que isso, uma simples forma de enganar o administrado de boa fé.

Ruy Cirne Lima, em seus Princípios de Direito Administrativo (p. 210), já vaticinava a necessidade de uma legislação destinada a dar seriedade, respeitabilidade e confiabilidade ao processo administrativo, para que os particulares passassem a aceitar suas decisões, aliviando a sobrecarga do Poder Judiciário. Um requisito básico e fundamental para isso é assegurar ao administrado (ou contribuinte, ou servidor, ou proponente ...) que postula ou se defende perante o Estado um tratamento que não o coloque numa posição subalterna. 

O processo administrativo brasileiro vem se desenvolvendo de acordo com as necessidades encontradas no deslinde da instrução, no entanto, não há uma norma clara e segura que seja capaz de alcançar todas as camadas da matéria.

Muitas vezes o que se têm observado é a insegurança jurídica que o processo administrativo gera. Isso porque, os ditames que serão utilizados para reger os atos processuais padecem de legislação clara e objetiva, sendo em várias oportunidades ditados de acordo com o juízo da própria autoridade que conduz o ato.

Não há, até hoje, um Código de Processo Administrativo como nos outros ramos do Direito. Essa ausência de codificação gera cada vez mais um descontrole da regência dos atos administrativos que, muitas vezes, são conduzidos, pelo mesmo órgão, de forma absolutamente diversa. 

Este empecilho acarreta na dificuldade de exercício pleno dos direitos dos administrados que figuram no polo passivo dos processos administrativos, pois, não há como prever como será o deslinde do feito.

Aqui não se nega a vigência a Lei nº 9784/99 que tem como escopo regular o processo administrativo no âmbito federal. No entanto o problema não está na lei e sim em quem a aplica. “O problema é o guarda da esquina ”.

Os referidos guardas se materializam atualmente nas pessoas dos Delegados, Auditores, Conselheiros, Agentes Administrativos, etc., que exercendo poder decisório se valem da ausência de controle direto pelo Judiciário para proferir decisões atreladas a convicções pessoais, dissociadas da legalidade, em processos ou atos administrativos utópicos.

O processo administrativo, para que seja justo e seguro, deve seguir uma série de atos, de acordo com o cronograma legal, garantindo o acesso idêntico aos interessados. O processo deve ser uma estrutura rígida pela qual só se transpassaria mediante a superação das camadas anteriores.

Não é o que ocorre em tantos processos que tramitam perante a Administração Pública, onde nem as garantias mínimas trazidas no bojo da Lei nº 9.784/99 são respeitadas no curso do processo administrativo.

Tal informação é facilmente comprovada quando se buscam dados estatísticos acerca do acesso ao judiciário com vistas à revisão de processos ou decisões administrativas que produzem efeitos aos administrados.

No cotidiano jurídico, verifica-se com facilidade o número de decisões administrativas que são reformadas pelo judiciário ou de processos administrativos que são anulados pelo poder judiciário por não respeitarem princípios e leis.

Ainda, somente a título ilustrativo, vale trazer ao conhecimento os dados de punições aplicadas pelo Departamento de Polícia Federal às empresas de segurança, de formação de vigilantes e instituições financeiras, em processos administrativos.

Conforme informações obtidas em pesquisa no Diário Oficial da União, de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2016 foram julgados, pela Polícia Federal, 2522 processos administrativos punitivos, por infrações a lei da segurança privada; destes 2522 processos, somente 07 foram julgados a favor do administrado!

Tendo sido constatado o número de 99,72% de punições aplicadas por infrações à Lei 7.102/83 .

Tais dados causam espanto ao administrado que, além de ser submetido a um processo sem regras claras, é condenado em quase 100% dos casos. É absolutamente compreensível esse massivo acesso ao judiciário buscando ver as decisões administrativas revisadas. 

Esse movimento de submeter atos administrativos para a apreciação do poder judiciário é fruto da insegurança jurídica que assola os litigantes em processo administrativo, por conta da ausência de regra de regência clara dos atos.

Em breve pesquisa pelo sítio do Superior Tribunal de Justiça, sem a finalidade de se esgotar o tema ou apurar a característica de cada processo, constatou-se a existência de cerca de 150 mil processos, somente no STJ, em que alguma extensão do Estado figura como réu.

Pelo exposto, verifica-se a vaidade das diversas longa manus do Estado e a indiferença com relação aos princípios constitucionais aos litigantes em processos administrativos como ferramentas de supressão de direitos e fomentadoras do afogamento do Poder Judiciário.

Jorge Advogados Associados

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1 MOREIRA, Egon Bockmann, Processo Administrativo Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999, 2ª Edição. Malheiros, 2000. p. 20.

2 FERRAZ, Sérgio & DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 1ª edição, 3ª tiragem. Malheiros. p. 53.

3 No momento da decretação do Ato Institucional nº5, o vice-presidente civil do General Costa e Silva, Pedro Aleixo afirmou que não tinha nenhum receio em relação a utilização do AI 5 pelo então presidente, mas sim que o tinha “medo em relação ao guarda da esquina” fazendo clara menção ao perigo de se adotar norma ampla como o referido Ato Institucional e dispersá-la às mãos de todos os servidores do regime.

4 CNJ. “Agências reguladoras são parte em 83 mil processos na Justiça Federal”. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/56946-agencias-reguladoras-sao-parte-em-83-mil-processos-na-justica-federal - Agências Reguladoras são parte em 83 mil processos na Justiça Federal. (2011).

5 Lei 7.102/83 é a lei que dita as regras para o exercício da atividade de segurança privada, formação de vigilantes e instituições financeiras.

6 Dados solicitados à ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE VIGILÂNCIA que, por meio de convenio autorizou o envio pela DATASAFE MERCANTIL E SERVIÇOS LTDA. Os dados foram obtidos pelas acima mencionadas, por meio do sistema de Gerenciamento Eletrônico de Segurança Privada e Diário Oficial. Dados solicitados pessoalmente em 10 de setembro de 2016 e enviados por e-mail (vjorge@datasafe.com.br) em 19 de setembro de 2016.


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